Reforma administrativa propõe tabela única para reduzir desigualdades entre servidores
Enviado Segunda, 06 de Outubro de 2025.Prazo para implementação de medida pode levar até dez anos
Os supersalários no serviço público escondem uma realidade de forte desigualdade no funcionalismo. O salário mediano dos servidores da União, estados e municípios era de R$ 3.391 em 2022, de acordo com os dados mais recentes da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). O levantamento aponta que eram 10,6 milhões de servidores civis com vínculos ativos naquele ano em todo o país.
O assunto é um dos pontos discutidos na proposta de Reforma Administrativa protocolada na quinta-feira na Câmara dos Deputados. O texto prevê 70 medidas distribuídas em quatro eixos: estratégia, governança e gestão; transformação digital; profissionalização do serviço público; e combate a privilégios.
Para atacar a desigualdade no serviço público, além de travas para conter o ganho extratexto, a proposta prevê criar tabela única de remuneração para cada ente da República, com salários de servidores de todos os Poderes. O prazo para implementação, porém, é elástico: de até 10 anos a contar da aprovação da reforma.
O entendimento é que a lista, que iria do menor salário ao teto — que, com reajustes, chega hoje a R$ 46.366 —, organiza os diferentes planos de cargos e salários das carreiras do serviço público, de acordo com a complexidade, ajudando a dar mais visibilidade para toda a sociedade da grande disparidade existente.
E uma vez que a tabela estivesse em vigor, acabaria com o tratamento diferenciado de categorias nas negociações salariais a depender do nível de organização ou pressão de cada sindicato — o que acaba ampliando desigualdades. O reajuste seria único para toda tabela, e não individualizado por cada carreira.
Acima do limite
Apenas 0,06% dos servidores têm remuneração que supera o teto constitucional de forma regular, de acordo com dados da Rais reunidos pelo Movimento Pessoas à Frente. Dessa forma, seriam cerca de 6 mil funcionários recebendo de forma permanente além do limite — que naquele ano era de R$ 39.293 —, o que aponta para as discrepâncias entre remunerações.
O relator da Reforma Administrativa na Câmara, deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), diz que a tabela de remuneração é inegociável e faz um paralelo com o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) na Reforma Tributária, que irá unificar os diferentes tributos federais, estaduais e municipais, e deve dar mais transparência. Além da União, cada Estado teria sua tabela. Os municípios poderiam escolher elaborar uma listagem própria ou usar a referência estadual.
— Todo mundo tem que estar na tabela: o porteiro, o auxiliar administrativo e o Lula — disse Pedro Paulo, citando o presidente.
Especialista em gestão pública, o professor Humberto Falcão, da Fundação Dom Cabral, defende a tabela única como ferramenta para organizar o sistema de carreiras no serviço público, que hoje é bastante confuso.
— Hoje, tem cargos equivalentes, com denominação parecida ou até igual, como analista administrativo, mas com remunerações bastante diferentes — afirma.
Já Jessika Moreira, secretária-executiva do Movimento Pessoas à Frente, avalia que há grande disparidade entre os entes da federação:
— Isso vai na linha de desigualdade também. É uma diversidade imensa de capacidades institucionais quando olhamos para uma prefeitura pequena e para outras administrações.
Sem supersalários
Os dois especialistas concordam que o primeiro passo para combater as desigualdades no serviço público é lutar contra os supersalários e os privilégios. Para Falcão, abordar o tema de frente é uma “questão de honra” na Reforma Administrativa.
— Tem que restringir ao máximo as categorias de remuneração de natureza indenizatória, fixar os limites que estão no teto de maneira mais contundente para cercear e, na melhor das hipóteses, eliminar os subterfúgios — diz.
Pela Constituição, o salário dos ministros do STF é o limite remuneratório que pode ser pago para todos os servidores federais. Nos estados, o teto normalmente é definido pelo pagamento ao governador. No entanto, algumas categorias de elite do serviço público usam brechas na legislação para conseguir superar o limite constitucional.
De acordo com o Movimento Pessoas à Frente, a remuneração acima do teto está concentrada nos rendimentos do Judiciário, incluindo o Ministério Público. Levantamento da entidade, divulgado neste ano, aponta que as remunerações extrateto no Judiciário somaram R$ 10 bilhões em 2024.
— Não faz sentido, olhando para um país tão desigual, que tenhamos menos de 1% do funcionalismo desrespeitando o teto constitucional, muito além, e livre do pagamento do Imposto de Renda — destacou Jessika Moreira.
Veto a "penduricalhos"
A principal ação defendida pelo movimento para barrar os supersalários é colocar na lei a classificação correta de verba indenizatória, que deve ser uma remuneração de reparação, pontual e específica, e da verba remuneratória, vedando que os “penduricalhos” sejam criados por ato administrativo.
O secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão, José Celso, destaca que o funcionalismo no Brasil se caracteriza por uma grande heterogeneidade interna e desigualdade salarial — embora menor do que no setor privado.
Com esse diagnóstico, José Celso afirma que, desde 2023, o ministério vem trabalhando na racionalização da estrutura de remuneração das diferentes categorias. Na carreira de ciência e tecnologia, por exemplo, os servidores de nível superior tinham 19 tabelas — agora têm oito.
Limite Reforma administrativa limita penduricalhos a 10% do salário para servidores que ganham próximo do teto
Para o secretário, a padronização em uma única lista é uma boa ideia, inspirada em Portugal e na França, mas de implementação complexa. Atualmente, há mais de 250 tabelas remuneratórias no serviço público federal, regidas por diferentes leis. São 576 mil servidores ativos na União.
Além disso, como a Constituição proíbe a redução de salários, José Celso explica que seria necessário elevar os salários de baixo para cima, para diminuir a disparidade, o que esbarra em restrições fiscais.
— Envolve uma mudança legislativa bem grande nas leis das carreiras hoje existentes para poder padronizar todas as estruturas remuneratórias em uma única tabela e uma disposição do Poder Executivo para deslocar orçamento para isso. Se não, a tabela vai ter a estrutura de desigualdade que tem hoje, mas, em vez de ser em tabelas diferentes, será em uma só — disse, destacando que o processo é de médio e longo prazo.
Enquanto o Congresso discute mudanças nas regras para o funcionalismo, concurseiros buscam entender como isso vai impactar nas carreiras. Ysday Custódio, de 35 anos, que se prepara para o Concurso Nacional Unificado (CNU) de 2025, pede que as mudanças não prejudiquem a “base” do serviço público.
O servidor Tiago Alencar, de 27 anos, já aprovado em concurso e hoje se preparando para carreiras jurídicas, vê pontos positivos na ideia de equiparar funções semelhantes, mas alerta para os riscos na execução, que podem levar à judicialização.
Já Eugênio Bezerra, de 48 anos, que se prepara para a magistratura, defende a manutenção das regras sobre estabilidade:
— A estabilidade não é apenas uma proteção ao servidor, mas uma garantia de que ele possa exercer suas funções com independência, sem ceder a pressões políticas de governos de ocasião.
Fonte: O Globo