Residência fiscal no Brasil: hipóteses de dupla tributação despercebidas

Enviado Terça, 15 de Março de 2022.

Conforme amplamente noticiado pela mídia, o ex-juiz e pré-candidato à Presidência Sergio Moro auferiu rendimentos de fonte situada no exterior onde residiu e atuou como diretor de uma empresa de consultoria multinacional.

Vale destacar, também, no que tange a um residente no Brasil com rendimentos no exterior, a decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) que manteve a autuação fiscal do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha por valores mantidos no exterior, em trusts, que, segundo a decisão, eram livremente movimentadas pelo mesmo, comprovando sua disponibilidade econômica e jurídica. (Acórdão nº 2401-010.022, Sessão de 9/11/2021)

Ambos os casos evidenciam a importância de entender – e cumprir – as regras brasileiras na ocasião da declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), assunto que volta a aflorar perto da época do envio da referida declaração.

Assim, apresentaremos brevemente os principais aspectos relacionados ao IRPF de brasileiros com residência e/ou rendimentos no exterior bem como aspectos relevantes aos estrangeiros que vierem a residir no Brasil. 

A dupla tributação muitas vezes ocorre desnecessariamente, quando por descuido ou desconhecimento a residência fiscal brasileira é mantida.

Na lição de Alberto Xavier (Direito Tributário Internacional do Brasil, 8ª Ed , Forense, p 192 e 221), enquanto os não residentes[1], via de regra, estão apenas sujeitos ao regime da “tributação limitada” (princípio da territorialidade), os residentes estão sujeitos à tributação sobre suas rendas globais, ou seja, auferidas de fontes tanto no Brasil como no exterior, segundo o princípio da universalidade (“tributação ilimitada” ou “worldwide income taxation”).

Nesse sentido, as pessoas físicas domiciliadas ou residentes no Brasil, titulares de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza, inclusive rendimentos e ganhos de capital, são contribuintes do imposto de renda, sem distinção da nacionalidade, sexo, idade, estado civil ou profissão (artigo 1º RIR e 43 do Código Tributário Nacional)[2].

Por outro lado, a renda e os proventos de qualquer natureza percebidos no Brasil por residentes ou domiciliados no exterior, ou a eles equiparados, são submetidos ao imposto de renda na fonte, salvo situações específicas.

A Comunicação de Saída Definitiva é obrigatória para o contribuinte que sai do Brasil em caráter definitivo ou passa à condição de não residente no país, quando houver saído em caráter temporário. Ela deve ser apresentada a partir da data da saída do território nacional e até o último dia do mês de fevereiro do ano-calendário seguinte, se a saída ocorreu em caráter permanente. Caso a saída tenha sido em caráter temporário, a Comunicação deve ser entregue a partir da data da caracterização da condição de não residente e até o último dia do mês de fevereiro do ano subsequente (artigo 11A, IN 208/2002).

Além da Comunicação de Saída Definitiva, deve ser apresentada a Declaração de Saída Definitiva, obrigatória em relação ao período em que o contribuinte tenha permanecido na condição de residente fiscal no Brasil no ano da saída do país ou da caracterização da condição de não residente, até o último dia útil do mês de abril do ano subsequente ao da saída definitiva ou da caracterização da condição de não residente (artigo 9º, IN 208/2002).

Eventual imposto apurado na Declaração de Saída Definitiva e créditos tributários ainda não quitados devem ser recolhidos em quota única, cujo prazo é a data prevista para entrega da declaração. Declarações de ajuste anual do imposto de renda de anos anteriores porventura não entregues, se obrigatórias, também devem ser apresentadas acompanhadas do imposto e da multa, se devidos.

Ocorre que, na prática, o compliance acerca da entrega de tais documentos é constantemente esquecido pelos residentes fiscais brasileiros que se retiram do país.

A consequência é que o Brasil pode tributar os respectivos rendimentos auferidos não só no país de destino, mas em todo o mundo, em razão do já mencionado princípio da universalidade, durante os primeiros 12 meses consecutivos de ausência, muito provavelmente gerando dupla tributação sobre o mesmo rendimento (residência fiscal temporária por descumprimento de obrigação acessória).

Corroborando o acima, de acordo com decisão do Carf (Acórdão nº 2301-007.136 – 2ª Seção de Julgamento / 3ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, sessão de 04/03/2020), o voto vencedor do conselheiro Mauricio Vital aduz que a pessoa física contribuinte nacional apenas perde a condição de residente no Brasil se, cumulativamente: 1) retira-se do território brasileiro; e 2) apresenta a Comunicação e Declaração de Saída Definitiva do país no prazo estabelecido em lei.

Pior para aqueles que saem do Brasil em caráter permanente sem apresentar a Comunicação de Saída Definitiva do país e retornam ao país anualmente para passar férias, visitar amigos ou por motivos profissionais, sem passar 12 meses consecutivos de ausência após a saída em caráter permanente. Isso porque em tais casos a residência fiscal brasileira jamais deixou de existir, de sorte que os rendimentos globais auferidos pela pessoa estão sujeitos à tributação pelo imposto de renda brasileiro.

Por oportuno, destacamos que o artigo 27 da Lei 12.249, de 11 de junho de 2010, dispõe que a transferência do domicílio fiscal da pessoa física residente e domiciliada no Brasil para país ou dependência com tributação favorecida ou regime fiscal privilegiado (vide Instrução Normativa da RFB 1037/2010 para indicação dos referidos países e regimes), somente terá seus efeitos reconhecidos na data em que o contribuinte comprove: 1) ser residente de fato naquele país ou dependência, ou 2) sujeitar-se a imposto sobre a totalidade dos rendimentos do trabalho e do capital, bem como o efetivo pagamento desse imposto.

A referida Lei dispõe ainda que, nos casos do item 1, consideram-se residentes de fato as pessoas físicas que tenham efetivamente permanecido no país ou dependência por mais de 183 dias, consecutivos ou não, no período de até 12 meses, ou que comprovem que ali se localiza a residência fiscal habitual de sua família e a maior parte de seu patrimônio. O caráter antielisivo dessa norma é também chamado por Alberto Xavier (“Direito Tributário Internacional do Brasil”, 8ª ed., Forense, p. 258) de “trailing tax ou imposto de perseguição”, eis que visa a evitar situações em que a pessoa residente no Brasil saia do país apenas para evitar o recolhimento de imposto, transferindo sua residência temporariamente para paraísos fiscais ou regimes fiscais privilegiados.

Estrangeiros que passam a residir no Brasil também devem observar as normas locais como será exposto a seguir.

O estrangeiro que ingressa no Brasil com o antigo visto permanente (atual Autorização de Residência Deferida por Prazo Indeterminado) adquire a residência fiscal na data da chegada e, portanto, a intenção de retornar definitivamente ao país é irrelevante.

Assim, a Comunicação de Saída Definitiva do país deve ser apresentada após cada saída no Brasil com a referida autorização, sob pena de ser considerado residente fiscal brasileiro desde a data de sua chegada até terem se completado os 12 meses consecutivos de ausência do Brasil após sua última saída.

É muito comum, com relação aos estrangeiros, menção ao “mito” de mais de 183 dias de permanência no Brasil para configuração da residência fiscal no país.

Ressalta-se que é apenas no contexto do visto temporário obtido por estrangeiro que a residência fiscal resta configurada no caso de permanência no Brasil por tempo superior a 183 dias, consecutivos ou não, dentro de um período de até 12 meses, salvo nos casos em que o não residente ingressa no Brasil para trabalhar com vínculo empregatício ou atuar como médico bolsista no âmbito do Programa Mais Médicos, quando a residência fiscal resta configurada na data da chegada.

Ratificando o disposto na legislação vigente, a Receita Federal do Brasil e o Carf confirmaram em diversas ocasiões que o simples ingresso de estrangeiro em território nacional portando o antigo visto permanente, por qualquer motivo, tem o condão de caracterizá-lo como residente fiscal no Brasil[3].

As questões acima apresentadas podem parecer preciosismo e não raro é sugerido que o fisco brasileiro não terá interesse em despender esforços para tributar rendimentos auferidos fora do país por pessoas físicas efetivamente residindo no exterior, ou que sequer terá conhecimento acerca dos referidos rendimentos.

Destaca-se, entretanto, que a Receita Federal do Brasil é conhecida por ter sistemas extremamente avançados e eficientes para cruzamento de dados e o Brasil está cada vez mais inserido no contexto internacional de cooperação e troca de informações. 

Ademais, o Brasil é signatário de diversos acordos de troca de informações internacionais[4] e a cooperação internacional é tendência mundial, sendo inegável que o país terá conhecimento das rendas auferidas no exterior por seus residentes fiscais e, caso assim entenda, submeterá as mesmas à tributação do imposto de renda local, incluindo multa e juros de mora, tendo sucesso no contencioso nacional.

Um exemplo de uso da cooperação internacional e tributação da renda global de residentes no Brasil está no já mencionado caso recentemente julgado pelo Carf que manteve a autuação fiscal do ex-deputado Eduardo Cunha por verificar, através de documentos obtidos em cooperação internacional, valores que o político mantinha no exterior.

No âmbito dos tratados internacionais, a determinação da residência fiscal é questão primordial e necessária na aplicação dos tratados de dupla tributação. Logo no primeiro artigo da Convenção Modelo OCDE consta que os tratados se aplicam aos residentes dos Estados Contratantes, de modo que, não sendo residente, o indivíduo não faz jus à aplicação da convenção para evitar a dupla tributação da renda, salvo nos casos envolvendo a aplicação do artigo sobre a não discriminação.

No entanto, existem situações em que se apresenta demasiadamente difícil identificar o país com o qual o indivíduo possui laços econômicos e pessoais mais estreitos.

Em outras ocasiões, países podem adotar critérios distintos no direito interno no que tange aos conceitos de domicílio e residência, o que na falta de convenção internacional ou regra doméstica específica pode levar à dupla tributação. Fato é que invariavelmente ocorrerá a dupla tributação da renda em função de o indivíduo ser considerado residente fiscal em dois países. A dupla tributação será evitada nos casos em que a legislação doméstica dos países unilateralmente a elimine, ou mitigue. No Brasil, essa possibilidade está prevista no artigo 115 do Regulamento do Imposto de Renda quando há reciprocidade de tratamento entre os países envolvidos, desde que o imposto não seja compensado ou restituído no exterior.

Não havendo referida norma doméstica, o papel desempenhado pela CM OCDE para evitar a dupla tributação, ou mesmo a dupla não tributação, se mostra extremamente relevante e preciso, posto que viabiliza a manutenção pelos países contratantes dos conceitos previstos na legislação doméstica ao mesmo tempo em que possibilita a definição da residência fiscal para fins da convenção. Com efeito, nas situações em que, de acordo com o direito interno de ambos os Estados Contratantes, o indivíduo se afigura duplo residente, o artigo 4.2 da CM OCDE estabelece critérios preferenciais a serem adotados na definição de qual dos Estados Contratantes poderá exercer a tributação em bases universais[5].

As circunstâncias devem ser analisadas como um todo, mas merece maior atenção os atos pessoais do indivíduo. Se o indivíduo possui uma habitação num país e estabelece outra em outro país, o fato de manter uma habitação no primeiro país, onde ele sempre viveu, trabalhou, vive sua família e suas propriedades, pode, junto com outros elementos, ser decisivo para identificar o centro de interesses vitais em relação ao primeiro país.

Ademais, a utilização de crédito de IRPF recolhido no exterior para pagamento do IR devido no Brasil é possível quando o primeiro é pago em país que tenha assinado com o Brasil tratado para evitar a dupla tributação, ou quando haja reciprocidade de tratamento entre ambos, desde que o imposto não seja compensado ou restituído no exterior.

O Brasil atualmente conta com 35 tratados em vigor para evitar a dupla tributação. Embora não tenha um tratado com EUA, Reino Unido e Alemanha, a Receita Federal reconheceu a reciprocidade de tratamento com os referidos países, segundo o qual o imposto de renda federal pago nos pode ser compensado com o IR devido no Brasil, ressaltando que o valor do crédito concedido no Brasil jamais será superior à alíquota de IR aplicada no Brasil sobre o mesmo rendimento.

No mundo cada vez mais globalizado e fiscalmente transparente, com troca automática de informações, a probabilidade de as autoridades fiscais no Brasil receberem a informação de que seus residentes fiscais possuem ativos no exterior aumenta a cada dia, de sorte que podem lavrar autuações em que os contribuintes sequer tinham conhecimento de que a residência fiscal foi configurada, sendo essencial o compliance com as normas da Receita Federal do Brasil acerca da comunicação e declaração de saída do país tanto para brasileiros quanto para estrangeiros.

Se a residência fiscal já tiver sido manifestada em outro país, há ainda o risco de dupla tributação do rendimento, salvo se houver acordo para evitar a dupla tributação ou o outro país aliviar a tributação domesticamente, hipótese em que o Brasil aplica a reciprocidade de tratamento.

Consequentemente, é inegável que a residência fiscal é tema relevante e cada vez mais em destaque ante os crescentes movimentos migratórios no Brasil, devendo sua caracterização ser analisada caso a caso, incluindo as respectivas implicações.

Fonte: Site Jota