Imunidade tributária recíproca e o princípio da lealdade federativa
Enviado Terça, 23 de Setembro de 2025.Municípios, em toda a sua autonomia, são virtuosa criação da Constituição de 1988; não podem, porém, desejar o que é do outro
A coluna de hoje discute as bases teóricas e normativas que forjam um caso em tramitação no Supremo Tribunal Federal, iniciado com a oposição, pela Ferrovia Centro-Atlântica S.A., de embargos à execução fiscal em desfavor do município de Varginha (MG) contra uma cobrança de IPTU.
Pessoa jurídica de direito privado, ela é concessionária do direito de exploração, em regime de exclusividade, do transporte ferroviário na malha Centro-Leste, tendo arrendado bens operacionais afetos à prestação do serviço público concedido, após ter tido êxito em certame público para cuja prestação se submete a regulamentação setorial.
Esses bens não são de sua propriedade, não detendo, ela, domínio útil ou a posse com animus domini. A legislação que liquidou a Rede Ferroviária Federal (Lei 11.482/2007) transferiu a propriedade de todos os seus bens operacionais para o DNIT, nos termos do art. 21, XII, “d”, da Constituição Federal.[1]
Os embargos da Ferrovia foram julgados procedentes, afastando o IPTU. Varginha apelou. O TJMG, na apelação, declarou legítima a exação do IPTU.
A Ferrovia interpôs extraordinário alegando (i) ser parte ilegítima para figurar no polo passivo da cobrança, por não exercer a propriedade, tampouco a posse apta a autorizar a sujeição ao IPTU (ausência de animus domini); (ii) inexistir base de cálculo para a cobrança da exação; e (iii) haver imunidade recíproca (art. 150, VI, “a” da CF).
Reconhecendo a repercussão geral da discussão, o STF definiu o Tema 1297: “Imunidade tributária recíproca sobre bens afetados à concessão de serviço público”.
Inicialmente relatando o caso, o ministro Luís Roberto Barroso sumariou quatro teses que tocam aspectos distintos da macrodiscussão: (i) Tema 385: a imunidade não se aplica a empresa privada, arrendatária de imóvel público, que explora atividade econômica com fins lucrativos; (ii) Tema 437: incide IPTU sobre imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado; (iii) Tema 508: a sociedade de economia mista, cujos ativos são negociados em Bolsa e que distribui lucro, não está abrangida pela imunidade tributária; (iv) Tema 1140: as empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca.
“Nenhuma delas, no entanto, trata especificamente da manutenção da imunidade sobre bens públicos afetados à serviço público outorgado a particular”, disse o ministro.
O caso, hoje concluso, ganhou a honrosa relatoria do ministro André Mendonça.
Em Política Literária, Carlos Drummond de Andrade escreveu que o poeta municipal discutia com o poeta estadual “qual deles era capaz de bater o poeta federal”.[2] Aludia, o “Poeta dos Poetas”, à autofagia brasileira quanto ao seu próprio federalismo?
O caso relatado acima exibe mais uma dessas nuances confusas do tipo de federação que o Brasil, em sua história, viu se consolidar, mas, ao mesmo tempo, entrega à jurisdição constitucional a possibilidade de corrigir iniciativas indevidas dos Municípios contra o patrimônio da União, mantendo hígida a autoridade da Constituição Federal.
A imunidade tributária recíproca é uma das muitas expressões do princípio da lealdade federativa, que dimana da indissolubilidade do pacto federativo (art. 1º da CF) e da vedação aos entes federados de criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (inciso III do art. 19 da CF).
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, na condição de princípio fundamental de caráter geral e estruturante, o princípio federativo e a correspondente forma federativa de Estado foram, seguindo a tradição constitucional pretérita, incluídos (de acordo com o inciso I do § 4º do art. 60 da CF) no elenco dos limites materiais ao poder de reforma constitucional, ou seja, das assim designadas “cláusulas pétreas”.
Com isso, se assegura, de modo rigoroso, o caráter indissolúvel da Federação, tal como enunciado já no art. 1º da Constituição. A condição de “cláusula pétrea”, ademais, assegura algo além de uma proibição de abolição do instituto (ou instituição) previsto na Constituição, abarcando a proibição até mesmo de medidas restritivas que, embora não venham a suprimir o conteúdo protegido, o afetem em seus elementos essenciais. Eventuais ajustes no esquema federativo, como, por exemplo, na repartição constitucional de competências, não necessariamente implicam ofensa ao princípio federativo e ao Estado federal, desde que o preservem o seu conteúdo essencial.[3]
Na doutrina alemã, triunfa o Bundestreue (princípio da lealdade à Federação ou da fidelidade federativa), ou Prinzip des bundesfreundlichen Verhaltens (princípio do comportamento federativo amistoso) ou, por fim, nas palavras de Peter Häberle, Bundesfreundlich (conduta favorável à organização federativa).[4] O ministro Gilmar Mendes conduziu o seu voto na ADI 750 a partir desses conceitos.
A iniciativa dos municípios de cobrar IPTU de propriedades da União afetadas à prestação de serviços públicos igualmente de titularidade da União, cuja competência para erigir normas disciplinadoras é, uma vez mais, da União, e que não apenas é exercida fora do ambiente concorrencial como envolve a prestação de serviços da União por meio de seus agentes (no caso dos aeroportos, a Receita Federal, a Polícia Federal...), é prática que erode os pilares do pacto federativo e o subprincípio da lealdade federativa.
Segundo o art. 175 da Constituição, “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
Concessões existem para incrementarem a qualidade na prestação do serviço público, realizando o interesse público e preservando o patrimônio público concedido. Essa transferência apenas da execução do serviço público a terceiros não retira do poder concedente a titularidade do serviço e o seu controle.
A imunidade tributária recíproca, por sua vez, decorre da necessidade de observar-se, no contexto federativo, o respeito mútuo e a autonomia dos entes. Visa assegurar ao Estado o desempenho de suas funções, incluído o exercício de serviços públicos, seja direta, seja indiretamente, além do primado da isonomia entre as pessoas políticas, sem sujeição de um ente a outro, mormente na esfera tributária. Prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição, ela abrange seus respectivos entes administrativos criados para executar serviços públicos exclusivos do Estado, incluindo os concessionários.
Esvaziar a imunidade tributária recíproca malfere o sistema federativo, como anota o ministro Edson Fachin ao dizer: “com impactos sobre a prestação de serviços públicos, sobre a modelagem de outorga para o setor privado, assim como sobre a capacidade tributária dos entes municipais” (Tema 385 - RE 601.720).
Eis o ministro Celso de Mello: “A imunidade tributária recíproca – consagrada pelas sucessivas Constituições republicanas – representa um fator indispensável à preservação institucional das próprias unidades integrantes do Estado Federal, constituindo, ainda, importante instrumento de manutenção do equilíbrio e da harmonia que devem prevalecer, como valores essenciais que são, no plano das relações político-jurídicas fundadas no pacto da Federação” (RE 363.412/BA-AgR, DJe 19/9/2008).
Os municípios brasileiros, em toda a sua autonomia, são uma virtuosa criação da Constituição de 1988. Não podem, todavia, em sua jornada em busca de emancipação financeira, desejar o que é do outro. Negar as propriedades da União para, desconsiderando o pacto federativo e a imunidade tributária recíproca, tributá-las pelo IPTU, é um exemplo de deslealdade federativa que há de encontrar limites na interpretação acerca das competências tributárias de cada ente. Há, claramente, limites.
Afinal de contas, como anotou Robert Frost: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.
[1] “Art. 21. Compete à União: XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;”.
[2] Poema dedicado a Manuel Bandeira, publicado em Alguma poesia, Editora Pindorama, 1930.
[3] Sarlet, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. São Paulo: Saraivajur, 2022, p. 970.
[4] Häberle, Peter. El Estado Constitucional, Universidad Naci. Autônoma de México: México, 2001, p. 264.
- Saul Tourinho Leal: Pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade Humboldt de Berlim. Assessorou a Corte Constitucional da África do Sul e a vice presidência da Suprema Corte de Israel
Fonte: Jota - Opinião