O que dá pra rir, dá pra chorar: PEC 66, precatórios e federalismo

Enviado Terça, 05 de Agosto de 2025.

Ao ler o relatório da PEC 66 elaborado pelo deputado Baleia Rossi e ainda pendente de revisão no Senado, me veio à mente uma antiga música do compositor paraense Billy Blanco, que diz: “O que dá para rir, dá para chorar/ Questão só de peso e medida/ Problema de hora e lugar/ Mas tudo são coisas da vida”. Se aprovada a PEC, estados e municípios passarão a pagar de conformidade com uma fração de suas receitas, de forma proporcional ao estoque da dívida de precatórios que possuem, de tal forma que, quem deve mais, pagará um percentual maior, ao invés de pagar a integralidade dos débitos orçamentariamente inscritos.

Trata-se, obviamente, de mais um calote nos sofridos credores dos Poderes Públicos estaduais e municipais, que litigaram anos em busca de uma decisão a seu favor, e agora veem seu direito judicialmente reconhecido ser postergado por muitos outros anos, sem qualquer previsibilidade para quitação de seus créditos.

Se aprovada pelo Senado, estados e municípios rirão, mas será uma norma que fará chorar os maltratados cidadãos-jurisdicionados, e mais um vergonhoso desrespeito às decisões do Poder Judiciário, cometido pelo Poder Legislativo da União, sem que o Poder Executivo da União possa fazer algo, uma vez que, sendo uma PEC, sequer passa pela etapa de sanção ou veto do Chefe deste Poder. Restará aos jurisdicionados acionar o STF para análise de sua constitucionalidade.

Federativamente, a União não está inserida no calote previsto pela PEC 66, mas existe um dispositivo que também a fará rir. Trata-se do §19 a ser inserido no artigo 165, CF, que determina: “As despesas com precatórios e requisições de pequeno valor deverão ser classificadas para fins de cumprimento das metas fiscais, da seguinte forma: I – a obrigação principal como despesa primaria; II – a atualização monetária e os juros como despesa financeira”.

Essa norma é importantíssima e deve ser preservada, embora seja desnecessária, se adotado um rigoroso sentido técnico-jurídico. Como a burocracia econômica no Brasil faz pouco caso da doutrina jurídica, o texto se faz necessário, embora ainda esteja tecnicamente inadequado. Expus esse aspecto na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados na qual se discutia a PEC 66.

Precatório é dívida pública, e não despesa pública. Claro que todo pagamento realizado se traduz em uma despesa, mesmo aquele que você, caro leitor ou leitora, faz ao pagar o financiamento de um carro ou de um imóvel, que é uma dívida. Simplificando: ao pagar o boleto no banco, você paga uma despesa, que quita uma parcela da dívida, que contém juros e atualização monetária. Sendo os precatórios dividas públicas, sua quitação corresponde a uma despesa, sem que isso desnature sua característica de dívida.

Ocorre que a burocracia econômica não entende essa sutil, porém importantíssima diferença, e tem classificado os precatórios como despesa e não como dívida, o que traz relevante impacto nas metas fiscais a que a União deve se submeter para fins de sustentabilidade financeira e responsabilidade fiscal.

Para os economistas, que não ligam para os conceitos jurídicos, após o resultado primário devem ser consideradas apenas as dívidas financeiras, isto é, aquelas com o sistema bancário, o que afasta outras espécies de dívida, como os precatórios, cujos credores são os jurisdicionados e não os bancos. A rigor técnico, até mesmo os Restos a Pagar deveriam ser considerados como dívida (art. 36, Lei 4320/64 e art. 41-A, Lei de Responsabilidade Fiscal).

A chave para o entendimento está nos conceitos de dívida flutuante ou de curto prazo (menor de um ano) e dívida consolidada (maior que um ano), conforme alertei em outra oportunidade nesta ConJur.

Esse aspecto é driblado na proposta de norma do §19, no qual consta que o montante principal devido deverá ser classificado como despesa (inciso I), sendo classificado como dívida apenas os juros e a atualização monetária (inciso II). Isso reduz o problema, pois, ao longo do tempo, o montante original identificado como despesa primária será reduzido, e aumentará o montante de juros e atualização monetária. Trata-se de uma espécie de solução à brasileira, tal como comentei de forma irônica sobre a introdução do orçamento impositivo no Brasil, reduzindo o problema ao longo do tempo.

Billy Blanco tinha razão: o que dá pra rir dá pra chorar. Aprovada a PEC 66, chorarão os credores dos precatórios, e, por diferentes motivos, rirão estados e municípios, em razão do novo calote, e a União, que solucionará um problema que a aflige.

- Fernando Facury Scaff: é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

 

Fonte: Consultor Jurídico - Opinião