Reforma tributária: um defeito de gênero

Enviado Quarta, 30 de Julho de 2025.

Os tributos devem ser capazes de proporcionar arrecadação e distribuição de renda para alcançarmos um sistema tributário mais justo e equitativo

A tributação é pilar central do financiamento de políticas públicas, serviços públicos essenciais e redução das desigualdades, contribuindo para o crescimento econômico. Para ser eficaz e justo, um sistema tributário deve possuir equidade, simplicidade, transparência, elasticidade e estabilidade, baixo custo de conformidade e eficiência econômica. A pretendida justiça fiscal só poderá ser alcançada se a reforma tributária promover progressividade, conforme a capacidade econômica dos consumidores, em que os tributos sejam exigidos em maior proporção, dos mais ricos em comparação aos mais pobres.

A promessa era que a reforma iria reduzir a regressividade da tributação, respeitando a capacidade contributiva. Para tanto, foram introduzidos na Constituição o inciso VIII do § 5.º do artigo 156-A, para o IBS, e o §18 do artigo 195, para a CBS, os quais previram que haveria a devolução do imposto e da contribuição para as pessoas físicas de mais baixa renda. Quando da aprovação do PLP 68, pela Câmara dos Deputados, entretanto, constatou-se que o compromisso foi cumprido apenas em parte, pois o chamado cashback (art. 100 do PLP 68) considerou como de baixa renda o destinatário das devoluções que possui renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo nacional, ainda assim, a devolução foi parcial, alguns produtos com cashback de 100% para CBS e 20% para IBS e, a maioria apenas 20% para os dois tributos.

Como bem assevera Lana Borges, “diminuir os preços dos alimentos, por meio da fixação de alíquota zero, é uma forma de repercutir nos orçamentos das famílias brasileiras e mais diretamente nos orçamentos das mulheres, seja porque são num porcentual muito maior chefes dos arranjos familiares com apenas um responsável financeiro, seja porque concentram seus gastos em despesas de cuidados, como a alimentação”. No âmbito da tributação sobre o consumo, apesar de existir a constatação empírica há décadas de que existe um peso maior dos tributos que recaem mais sobre os produtos consumidos pelas mulheres do que sobre os homens, somente nos últimos anos começaram a ser publicados estudos comprovando esta realidade.

Uma pesquisa da Macfor encontrou grandes diferenças de preços, de até 92,79% entre produtos idênticos, de marca idêntica, vendidos pelo mesmo estabelecimento comercial, tendo como diferença apenas a cor. Uma caneta rosa era vendida a R$ 9,62, ante R$ 4,99 cobrados por uma idêntica de cor amarela. No segmento de beleza e perfumaria, 98,30% viam incidência da taxa rosa nesse setor, seguidos por moda e acessórios (89,70%), serviços em geral (24,10%), decoração (22,40%), brinquedos (17,20%), eletrônicos (15,50%) e livros e papelaria (13,80%).

Segundo Louize Fischer, chefe de inteligência de mercado da Macfor, a diferença de preço cobrado entre produtos para o público feminino e masculino deve-se ao fato de que as mulheres “são mais vulneráveis à aquisição de produtos por impulso emocional”. Aqui, se constata que as armadilhas do marketing, além de um grave abuso moral, promovem a extorsão de recursos das mulheres, obrigadas a pagar mais caro em decorrência do seu gênero.

Com a reforma tributária em debate no curso do ano de 2023, os grupos mais representativos de mulheres, como o Grupo Mulheres do Brasil, Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP, Mulheres no Tributário, Instituto Empoderar, Tributação e Gênero (TEG), fizeram movimentos para que as políticas fiscais pudessem se juntar para reparar esse tratamento desigual. Após intensos debates, foram aprovados, na Emenda Constitucional n.º 132/2023, dispositivos com esse objetivo. Pela primeira vez, em matéria tributária, foi reconhecida como diretriz a necessidade de ser examinado o impacto da legislação dos tributos a que se refere o caput deste artigo na promoção da igualdade entre homens e mulheres.

Dispositivos aprovados na reforma tributária de 2023, apesar de tímidos, constituíram um avanço na correção das graves distorções da desigualdade de gênero. O Projeto de Lei Complementar 68/2024, que regulamenta a EC 132/2023, prevê, na lista de bens e serviços com alíquota zero, os produtos de cuidados básicos à saúde menstrual.

Os tributos devem ser capazes de proporcionar arrecadação e distribuição de renda para alcançarmos um sistema tributário mais justo e equitativo. Políticas sociais, como as que buscam auxiliar mulheres em situação de vulnerabilidade social na aquisição de autonomia financeira e obtenção de renda e políticas fiscais, no âmbito da tributação, podem ser utilizadas como instrumentos para combater as diferenças de tratamento entre homens e mulheres, devendo levar em conta também as características biológicas das mulheres, como a maternidade, o ciclo menstrual, o climatério e a menopausa. Além de vontade política, tais medidas requerem uma conscientização geral e muito bem difundida, pois só teremos uma sociedade economicamente viável, em que haja justiça social e segurança jurídica, quando todos os poderes e a sociedade atuarem conjuntamente para que exista efetivamente igualdade em direitos e obrigações para todas as pessoas.

- Rita Nolasco: Procuradora da Fazenda Nacional, é cofundadora do Projeto Mulheres no Processo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP)

- Mary Elbe Queiroz: Pós-doutora em direito tributário, é presidente do Centro Nacional para a Prevenção e Resolução de Conflitos Tributários (Cenapret)

 

Fonte: Estadão - Opinião