Na gasolina, o Estado tem sido o maior vilão
Enviado Segunda, 28 de Julho de 2025.Os combustíveis são a maior fonte de receita tributária dos governos por conveniência arrecadatória, apesar do seu impacto na inflação
Sem dúvida o custo da energia está entre os elementos mais importantes para o desenvolvimento de um país. Isso porque essa despesa tem impacto direto na inflação e na qualidade de vida da população. O preço da gasolina é um exemplo. Isoladamente, é o item de maior peso no IPCA, o índice da inflação: um quarto maior que a eletricidade, o terceiro item em peso (5,1870% contra 4,0106%). Assim, não surpreende que quando a gasolina sobe, volta a discussão: quem é o vilão?
Não faltam candidatos: no oligopólio internacional, seria o conluio de países exportadores? Ou seria, no mercado nacional, um possível cartel dos postos, ou ainda das grandes distribuidoras? O câmbio, a Petrobras, a regulação, a mescla do álcool à gasolina e até o açúcar no mercado internacional, também podem ser culpados; depende do momento. Analisando a história recente, como feito a seguir, a conclusão é que o vilão tem sido o Estado.
Mesmo sendo essencial à sobrevivência e imprescindível ao crescimento, por ser difícil de substituir, a energia é tributada em quase todo mundo. Aumentos de preço não reduzem o consumo na mesma proporção e geram, assim, um ganho extra. No Brasil, em maio de 2025, os tributos correspondiam a 34,5% do preço da gasolina, sendo 23,4% de impostos estaduais e 11,1%, federais. A remuneração da Petrobras respondia por 35,2% do preço, enquanto o álcool e as margens de distribuição e revenda somavam os restantes 30,3%; 13,4% para os usineiros, 16,9% para distribuidoras e revendedores.
Em resumo, hoje, o preço é dividido em três parcelas semelhantes entre o produtor, quem movimenta e comercializa o derivado e o coletor de impostos. Em razão de sua natureza, a cobrança do ICMS sobre a gasolina sempre foi objeto de discussão sobre os limites para tributação estadual. Em 2020, em meio à pandemia, chegou-se a elevados patamares. No Rio de Janeiro, o ICMS atingiu 34% do preço. Nos Estados com menor incidência, como no Mato Grosso e Amazonas, era 25% deste.
A falta de uniformidade e a não incidência monofásica do tributo, além de estimularem o descaminho e a sonegação, elevavam o seu custo para os agentes e o preço pago pelo consumidor. Motivado por razões eleitoreiras, mas também considerando a simplificação da apuração e arrecadação, em 2022, o governo editou as Leis Complementares no 192 e 194. A mudança era significativa: uma alíquota única, com valor fixo por litro.
Além de diminuir o preço, a ideia era facilitar o recolhimento das obrigações. A substituição da incidência ad valorem, uma porcentagem do preço de referência, pela incidência ad rem, um valor fixo e único para todos os Estados, ia neste sentido. Contudo, os últimos alegaram que o valor fixado resultava em perda e a disputa foi parar no STF. Este, seguindo os preceitos constitucionais e a norma então criada, apontou os limites e reforçou a essencialidade do produto, o que inibiria a majoração desenfreada dos tributos.
A legislação determina que bens essenciais - como combustíveis - devem pagar menos imposto. Não era o que se via. Entre abril e maio de 2022, o preço da gasolina estava entre R$ 7,25 e R$ 7,28 por litro. Um recorde que levou o governo a agir. Em agosto, ocorreu a desoneração dos encargos federais (que somavam R$ 0,69 por litro) e o recolhimento do ICMS, fixado pelo Senado Federal, caiu de R$ 1,73 para R$ 0,88 por litro. Na porta da refinaria, à época, o litro custava R$ 2,71. Em consequência, na bomba, o preço caiu para menos de R$ 5; um alívio para a inflação.
Contudo, no ano seguinte, enquanto, lá fora, o preço do barril começava a ceder, por aqui, os governos empossados procuravam recompor suas finanças. Em março de 2023, contornando o acordo definido no STF, o ICMS passou de R$ 0,88 por litro para R$ 1,02. Na mesma toada, a União também onerou a gasolina; a incidência, então zerada, passou para R$ 0,35 por litro. Em julho, a alíquota praticamente dobrou, perfazendo R$ 0,69 por litro, valor que permanece até hoje. Já o tributo estadual teve um incremento adicional em março de 2024: passou para R$ 1,38 por litro. Assim, depois de agosto de 2022, somente o ICMS aumentou em 55%.
Mais grave, a pressão fiscal sobre a gasolina continua. Em fevereiro passado, apesar do preço na refinaria ser 30% menor que o teto de 2022, ocorreu novo incremento do ICMS, mais R$ 0,10, passando para R$ 1,47 por litro. Considerando que, na primeira semana de junho, a Petrobras cobrava R$ 2,07 por litro, o ICMS representava exatos 71% deste preço. Importa observar que, até o final do ano passado, o aumento da gasolina estava entre os responsáveis pela inflação extrapolar as metas e por fazer o BC elevar o juro. Como mencionado, individualmente, é a despesa com maior peso no orçamento das famílias. Pelo que se viu, a administração deste preço e seus tributos não presta atenção alguma ao seu impacto.
A conveniência arrecadatória, a estrutura tributária e a inelasticidade da demanda explicam a conduta do fisco. Para os Estados, os combustíveis automotivos são estratégicos; de onde recolheram cerca de R$ 120 bilhões em 2023. Correspondeu a perto de 15% de toda a arrecadação estadual. Para eles, é a maior fonte de receita tributária. Pois bem, em junho de 2025, a Petrobras reduziu o preço da gasolina em R$ 0,17 por litro. Com certo retardo, a empresa repercutiu a queda dos preços internacionais do barril. Somada à valorização do real, a diminuição seria um alívio para inflação. Mas, ela pode não ocorrer, uma vez que, na forma como regulado pelo Confaz, o ICMS será reajustado todo ano e, visto o passado, ele não deixará de subir.
A reforma tributária, aprovada em 2023, promete acabar com o regime caótico atual a partir da unificação e simplificação dos tributos; uma bandeira fisiocrata do século XVIII. Até lá, no entanto, a atuação dos governos se mostra a antítese do razoável, quem dirá do essencial. A administração do preço da gasolina foi submetida às injunções eleitoreiras, por traz de pretensas melhoras, o que deu origem a um imbróglio jurídico-tributário que, apesar da prioridade concedida pelo STF, em nada afastou a ganância fiscal.
A volatilidade dos preços na revenda depois do início da década, os preços recordes em maio de 2022, a recente pressão inflacionária que causaram, a perspectiva de eles não repercutirem a queda dos custos por vir são sintomas de que o setor não está bem. No momento, o que importa e incomoda é a administração dos preços com fins puramente fiscais.
As consequências vão muito além do impacto aqui sublinhado. A captura do Legislativo, a inépcia do regulador, a adição de encargos parafiscais, como os Cbios, a descontinuidade de programas de monitoramento da qualidade e de coleta de informações, a criminalização dos agentes econômicos não hegemônicos são fatores que agravam uma conjuntura de negócios deveras contaminada e conturbada pelas ingerências de curto prazo. Tão defendida, é a concorrência que sai prejudicada e os beneficiados, não surpreende, continuarão sendo o fisco e o grande capital do setor.
- Luís Eduardo Duque Dutra é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris-Nord e Professor-Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
- Rafael Peroto é mestre e doutorando em Direito Constitucional e Processo Tributário pela PUC/SP, advogado e escritor.
Fonte: Valor Econômico - Opinião