A reforma tributária se esqueceu do terceiro setor
Enviado Sexta, 27 de Junho de 2025.Instituições privadas sem fins lucrativos suprem a incapacidade estatal de atender a necessidades sociais básicas
A reforma tributária do consumo, instituída pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar 214/2025, apresenta à sociedade brasileira um modelo fiscal que pretende ser mais justo e eficiente, pautado nos princípios da simplicidade, transparência, não cumulatividade plena, neutralidade, justiça tributária e proteção ao meio ambiente.
Sua mais significativa alteração é a instituição de dois novos tributos (IBS e CBS) em substituição aos velhos e complexos ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins. Dentre inúmeras relevantes mudanças no atual modelo fiscal, destacamos, para fins de reflexão, a previsão de uma ampla e generalizada extinção dos incentivos fiscais já concedidos e a vedação para a concessão de novos.
Pelo lado positivo, o fim dos benefícios fiscais acarretará significativa mitigação da guerra fiscal travada há décadas, além de eliminar inúmeras exonerações tributárias, muitas delas sem avaliação e controle dos seus resultados.
O país tem um encontro marcado com o debate envolvendo uma revisão abrangente das renúncias fiscais concedidas aos mais diversos setores econômicos, cujo custo-benefício precisa ser reavaliado sob a perspectiva da justiça fiscal e da eficiência. Contudo isso não pode servir de justificativa para que se ignorem os efeitos perniciosos de tal medida da reforma tributária sobre as atividades do terceiro setor.
As instituições privadas sem fins lucrativos suprem, com bastante intensidade e capilaridade, a incapacidade estatal de atender a necessidades sociais básicas, em áreas como educação, assistência, saúde, esporte e cultura. Dentre outros, falamos de orfanatos, creches, instituições que acolhem pessoas abandonadas ou cuidam de dependentes químicos. Todas serão atingidas pela ampla extinção dos benefícios fiscais, restringindo ou inviabilizando a continuidade de projetos sociais que dependem de estímulos financeiros de natureza fiscal.
Apesar de haver previsão expressa de imunidade tributária para as organizações assistenciais e beneficentes, que afasta até a cobrança de ITCMD sobre doações a elas destinadas, assim como da criação de um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, não há qualquer menção quanto à destinação de recursos ao terceiro setor e a seus projetos sociais, assistenciais e ambientais.
Isso significa que, acompanhando a diminuição gradual das alíquotas do ICMS e do ISS durante o período de transição ao novo sistema de tributação sobre o consumo, os valores recebidos pelas entidades do terceiro setor por meio dos incentivos fiscais relacionados a esses dois impostos serão reduzidos na mesma proporção, já a partir do próximo ano, deixando de existir por completo a partir de 2033.
O impacto da extinção dessas relevantes fontes de recursos não pode ser subestimado. De acordo com o relatório da fintech social Simbi, apenas no ano-base 2023, cerca de R$ 800 milhões foram aportados pela iniciativa privada a projetos nas áreas do esporte e da cultura por meio dos incentivos fiscais previstos nas legislações de estados e municípios.
Se nada for feito, o fim desses mecanismos de fomento ao investimento social resultará em redução drástica das fontes de financiamento das entidades da sociedade civil organizada que desenvolvem iniciativas de interesse social em suas diversas vertentes.
A FGV Justiça e o Instituto Iter, no âmbito do Fórum de Responsabilidade Social, realizaram recentemente um encontro com especialistas da área tributária, empresarial e social. Com a questão da ausência de tributação reduzida para serviços de saneamento básico e da universalização desse direito humano fundamental, o tema da extinção dos incentivos fiscais pautou os debates, uma vez que essa medida inequivocamente afetará a realização de atividades sociais tradicionalmente levadas adiante por empresas privadas e pelo terceiro setor.
Um país ainda tão desigual e carente de investimentos nessas áreas não pode se dar ao luxo de reduzi-los ainda mais. O poder de tributar deve conciliar justiça fiscal com justiça social.
- André Mendonça é ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Gustavo Bichara é advogado tributarista, Marcus Abraham é desembargador federal no Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Fonte: O Globo - Artigo