Entes regionais superam a União em gasto primário e impulso fiscal
Enviado Quinta, 05 de Junho de 2025.De 2019 a 2024, despesa de Estados e Municípios cresce 26,4% em termos reais, enquanto a federal aumenta 5%
De 2019 a 2024 a média trimestral dos gastos primários do governo federal aumentou 5%, de R$ 484 bilhões para R$ 508,2 bilhões, já descontada a inflação. A despesa primária total de Estados e municípios, que em 2019 tinha média trimestral comparável ao da União, de R$ 510,3 bilhões, disparou para R$ 645 bilhões em 2024, com alta real de 26,4%. O impulso fiscal dos gastos dos governos regionais chegou em 2024 a R$ 194 bilhões, equivalente a praticamente metade dos R$ 406 bilhões de variação real do PIB de 2023 para 2024. O efeito veio dessincronizado da política fiscal da União, que desacelerou gastos ao longo de 2024, após elevar despesas em 2023.
A alta nos gastos de Estados e municípios vem sendo sustentada principalmente por aumento nas transferências de recursos da União. Uma “descentralização fiscal silenciosa” tem contribuído para deterioração do resultado primário da União e para descoordenação entre a política fiscal e monetária e entre a política pública federal e a dos governos regionais. Os cálculos e análises são de estudo de Manoel Pires e Bráulio Borges, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
“A União pode tentar política fiscal mais neutra em relação ao ciclo ou até meio anticíclica, mas os governos regionais estão gerando estímulo. Isso atrapalha o ponto de rolagem da dívida pública, majoritariamente federal. O equilíbrio macroeconômico é ruim”, diz Borges. “O nível de gastos dos regionais ficou gritante no segundo semestre de 2024, quando a União apresentou medidas de ajuste e seu gasto contraiu. O movimento não foi acompanhado por Estados e municípios”, diz Pires.
Baseado em dados da Secretaria do Tesouro Nacional, o estudo mostra aumento de despesas primárias dos subnacionais em 2020 a partir do segundo semestre de 2021. A despesa primária média trimestral deles sai de R$ 491 bilhões em 2021 para R$ 645 bilhões em 2024, com alta de 31,3%. Na União o aumento foi de 13,7%. Sempre com ajuste sazonal e em valores do último trimestre de 2024, pelo deflator do PIB.
A União, compara Pires, elevou gastos em 2020, na pandemia. Isso passou por ajuste. Em 2023 as despesas subiram com a chamada Emenda da Transição (EC 126/22) e, ao fim do ano, houve pagamento extraordinário de precatórios. Em 2024, lembra, a União inicia processo de ajuste e reduz despesas. “Em 2025 esses gastos serão um pouco menores, provavelmente, caminhando para normalização do nível de 2022. Isso não deve acontecer nos Estados e municípios.” Nos regionais, o gasto primário médio trimestral em 2024 cresceu 7,7% ante média de 2023 e o da União caiu 0,1%.
Foram considerados entre os gastos dos regionais não somente as transferências constitucionais da União, de repartição de receita - Fundo de Participação dos Estados (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e repasse de IPI -, como também valores que, apesar de integrarem as despesas primárias da União, são repasses de recursos executados por Estados e municípios. Entre eles, Fundeb, Lei Kandir, emendas Pix, Fundo Constitucional para o Distrito Federal.
Nos gastos dos regionais, Pires destaca os investimentos. Pelo estudo, em 2021 os subnacionais investiram R$ 29 bilhões na média trimestral. Em 2024 a média quase dobrou, para R$ 57,6 bilhões. Chegou ao pico de R$ 63,2 bilhões no segundo trimestre de 2024. O investimento direto da União, livre das transferências, é muito menor, diz Pires. Cresceu de R$ 6,3 bilhões para R$ 9,2 bilhões na média trimestral de 2021 para 2024.
Outro destaque é em “outras despesas”, diz. Esse gasto dos regionais, mostra o estudo, cresceu de média trimestral de R$ 152,3 bilhões em 2021 para R$ 216,6 bilhões em 2024, com alta de 42%. Pelo estudo, a despesa de pessoal, que representa cerca de 40% do gasto primário total dos regionais, subiu, mas a taxa menor, de 20,6% em igual período e critério.
“Nos regionais o gasto cresce concentrado em investimento e políticas públicas diretas, principalmente em saúde, educação e segurança pública”, diz. Na União, compara, investimentos e despesas com pessoal não crescem, mas sobe o gasto com Previdência e benefícios assistenciais.
Entre os regionais, salienta Pires, no período mais recente os gastos municipais ultrapassaram os estaduais. “Historicamente, os Estados gastavam mais que os municípios. Quando começa o novo ciclo fiscal em 2021, ambos crescem, mas a partir de 2023 os municípios começam a crescer e sustentam o processo de crescimento.”
Pelo estudo, nos anos 2010 cerca de 55% dos gastos dos governos regionais eram dos Estados. A fatia caiu para 51% em 2022 e para 48% em 2024. Para Borges, é possível que o avanço dos municípios esteja relacionado ao ciclo político, com as eleições de prefeitos em 2024. A elevação do investimento bruto é um indicativo disso. Em 2024, diz, esse gasto nas prefeituras foi 52% maior do que em 2022, já descontada a inflação. Pires ressalta também que há tendência gradual de maior peso dos municípios na federação. Isso se expressa no aumento da cota do FPM ao longo dos últimos anos, além do Fundeb e das emendas Pix.
Com baixa capacidade de endividamento, os regionais dependem da alta de receitas para elevar despesas, explica Pires. A alta de receitas começou na pandemia, quando as transferências federais, dada a incerteza, superaram o necessário, diz. “A União entregou quase 1% do PIB de suporte aos regionais em 2020 e a receita própria deles caiu 0,3% do PIB. O excesso virou aumento de caixa”, diz Borges.
Ao lado da expansão das transferências, isso elevou a receita dos subnacionais, parâmetro fundamental para a concessão de crédito hoje, observa Pires. Em 2024 foram R$ 41,2 bilhões em garantias concedidas aos regionais, contra R$ 28,3 bilhões em 2023 e R$ 7,6 bilhões em 2022. “A melhora cíclica e a descentralização fiscal abrem espaço ao endividamento. O sistema poderia ser rediscutido para ser menos suscetível a esses fatores.”
Depois da pandemia, diz Pires, com o debate da reforma tributária, os Estados começaram, em 2023, a elevar o ICMS porque a distribuição de recursos com a reforma considerará a média da arrecadação. O crescimento da economia, elenca, também favoreceu as receitas. Além disso, o ajuste fiscal da União, focado em receitas, eleva a arrecadação dividida via FPE e FPM com Estados e municípios, o que já se liga ao processo de descentralização fiscal, aponta Pires.
Cálculos de Borges mostram que na média de 2006 a 2010, a arrecadação bruta federal foi equivalente a 22,8% do PIB. Nesse período, as transferências da União aos regionais via repartição de receitas foi em média de 3,72% do PIB. A receita líquida, portanto, foi de 19,1% do PIB (22,8 menos 3,72).
Em 2024 a arrecadação federal também foi de 22,8% do PIB, mas a receita líquida caiu para 18,41% do PIB, porque as transferências via repartição subiram para 4,4%. A despesa primária, também da média de 2006-2010 a 2024, cresceu de 17,2% do PIB para 18,8% do PIB. Uma alta de 1,6 p.p do PIB, observa Borges, do qual 0,29 p.p. foi aumento de transferências aos regionais que integram o gasto primário federal. Outro 0,28 p.p. foi de emendas parlamentares, exceto Pix.
O aumento do total das transferências da União em 2024, contra a média de 2006 a 2010, ressalta Pires, foi de 0,97 p.p. do PIB, reunindo repartição de receitas (0,68 p.p. do PIB) e repasses da despesa primária (0,29 p.p. do PIB). “Praticamente 1% do PIB em receitas a mais para Estados e municípios. É o que a União perde de recursos dela e que é transferido de forma compulsória aos regionais. ”
“Num cenário contrafactual, sem esse aumento, o resultado primário da União poderia ser quase 1 p.p. do PIB maior em 2024. Sairia de déficit para superávit, mesmo em bases recorrentes [que expurga efeitos de eventos atípicos]”, diz Borges. “Na comparação com a média de 2006 a 2010, cerca de 40% da deterioração do primário de 2024 se deve à descentralização fiscal.” O superávit médio recorrente da União entre 2006 e 2010, calcula, foi de 1,52% do PIB. O déficit de 2024 foi calculado em 0,93% do PIB. A deterioração entre os períodos foi de 2,45 p.p. do PIB (-0,93 menos 1,52). Pelo resultado estrutural, que expurga efeitos de eventos extraordinários e também cíclicos, o superávit médio entre 2006 e 2010 foi de 1,3% do PIB, e o déficit de 2024, de 1%, calcula. A piora de resultado foi, portanto, de 2,3 p.p. do PIB (-1 menos 1,3)
No intervalo de 2006 a 2010, escolhido para comparação, lembra Borges, o Brasil sustentou superávits primários elevados, chegou ao grau de investimento e a relação dívida/PIB caiu. No período imediatamente anterior, de 1999 a 2004, observa, o país passou por aumento de carga tributária.
Pelo estudo, o total de transferências da União aos regionais - considerando repartições de receita, inclusive royalties do petróleo, e gasto primário - cresceu do fim dos anos 1990 a 2010, estabilizou de 2011 a 2017 e voltou a subir desde 2019. Em 2024, chegou a R$ 595,7 bilhões, valor 5% maior que o de 2023 e 58% maior que os R$ 376,7 bilhões médios de 2011 a 2017. A média de 2019 a 2024 foi de R$ 516 bilhões, sempre em dados constantes de dezembro de 2024.
Pires considera emblemático o repasse do Fundeb, que era de 0,2% do PIB até 2020, alcançou 0,4% do PIB em 2024 e deve chegar a 0,5% do PIB em 2026. “Além do Fundeb, outras medidas já contratadas vão perpetuar ou alongar a descentralização fiscal”, diz. Um deles é o Propag, programa de renegociação de dívidas que deve permitir aos Estados ampliar gastos. Além disso, o fundo de desenvolvimento regional da reforma tributária terá aportes da União que começam com R$ 8 bilhões em 2029 e chegam a R$ 60 bilhões em 2043.
Ursula Dias Peres, professora de políticas públicas da Escola de Artes, Ciência e Humanidades da USP, diz que a nova distribuição de recursos do Fundeb teve como objetivo a redução de desigualdades, o que é positivo. “Houve um bolo de recursos a mais a Estados e municípios por vários fatores. A questão é como os recursos são aplicados. Nos recursos de capital vindo de emendas ou de operações de crédito, há plano para os gastos de custeio que decorrem dos investimentos? Muitos municípios receberam mais recursos de emendas do que sua capacidade de gerar receita própria.”
Cálculos de Borges mostram desafios macroeconômicos. Em 2024, diz, a variação real do PIB ante 2003 foi R$ 406 bilhões, em termos constantes. O impulso fiscal do gasto dos governos regionais foi de quase metade disso (R$ 194 bilhões) e o do gasto da União, de R$ 31 bilhões. Em 2023 o delta real do PIB foi de R$ 375 bilhões, com impulso fiscal de R$ 151 bilhões dos regionais e de R$ 233 bilhões da União. Em 2022, houve crescimento real de R$ 339 bilhões do PIB, com estímulo de R$ 338 bilhões dos subnacionais e de R$ 84 bilhões da União.
Pires lembra que em 2023 houve liberação federal de R$ 93 bilhões em precatórios ao fim do ano, com impacto econômico em 2024. “Parte do impulso da União calculado para 2023 se deu em 2024, na verdade. Feito esse ajuste, nos últimos três anos o gasto regional foi o fator principal de estímulo fiscal da atividade econômica.” Isso, diz, mostra dificuldade de coordenação macroeconômica. “A capacidade da União de fazer ajuste que possa desacelerar a atividade e ajudar o BC a controlar a inflação é muito menor hoje do que era há cinco ou seis anos.” O cálculo do impulso considerou multiplicadores conforme o gasto, explica Borges. “Óbvio que o efeito da política fiscal não é só via gastos. Uma alta de carga tributária, por exemplo, tira PIB. Isso não está na conta.”
Numa federação ideal, diz Pires, o sistema tributário tem que ser eficiente, concentrado, mas os governos locais é que conhecem a demanda local, diz. “É preciso algum grau de transferência. A questão é o ponto ideal da centralização no sistema tributário e da descentralização do gasto. A descentralização fiscal eleva risco de crise fiscal porque quem gasta não se preocupa com questões macroeconômicas. Isso pode elevar o risco moral. Quem gasta não arrecada e a conta vai para quem arrecada.”
Uma preocupação é que os processos de descentralização fiscal vêm com desarranjos políticos, diz Pires. “Piora na qualidade institucional e crise econômica levam a uma espécie de arrependimento da descentralização. Mas é difícil voltar atrás. Então, ou se discute a federação ou se eleva a carga para empoderar a União. Na nossa história recente, sempre houve aumento de carga.” Para Pires, não dá pra imaginar desfecho atual aumentando carga. “A sociedade hoje é muito reativa a isso. Mas é difícil rediscutir a federação para centralizar recursos já distribuídos. Nunca vimos isso acontecer.”
Para Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, é preciso começar a debater e colocar “ lupa” para Estados e municípios. “Nossa institucionalidade permite crer que com mais repasses há gestão melhor de receitas? Precisamos entender isso.”
Para Pires, é preciso buscar um processo de descentralização fiscal com aumento da capacidade de cooperação federativa, mas com ampliação da supervisão federal, fortalecendo órgãos de controle, criando fundos de poupança para fazer com que Estados sejam menos sujeitos à crise.
“Há uma descentralização mal feita e que teve ponto de partida ruim, mas é preciso lembrar que o Executivo federal também tem responsabilidade nisso”, diz Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos. Para ele, uma descentralização não pode ser discutida sem mudança na estrutura atual dos tribunais de contas de Estados e municípios. “São órgãos que deveriam ser o fórum de controle da aplicação de recursos públicos, mas estão capturados em razão de indicações políticas. Os tribunais nem sequer conseguiram harmonizar a contabilização estabelecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que já tem 25 anos.”
Para Dias Peres, não só União como também os Estados devem se envolver na coordenação. “Há 3,8 mil municípios [do total de 5,6 mil prefeituras do país] muito pequenos, com limitação para planejar, controlar e prestar contas.”
Até agora, a descentralização, avalia Pires, tem gerado fragmentação, maior dificuldade da União para organizar política pública e coordenar ações, além de muita rivalidade entre os entes. “Há casos emblemáticos da falta de coordenação. A União fez o Propag, com grandes benefícios na renegociação de dívidas e contrapartidas frágeis. Mesmo assim muitos Estados estão reclamando. A União nem sequer consegue ter algum tipo de apoio político na aprovação de um benefício grande.”
Fonte: Valor Econômico