Como chegamos aqui: entenda a crise do Pix, da criação da norma da Receita ao recuo por causa das fake news
Enviado Quinta, 16 de Janeiro de 2025.Após repercussão negativa, Lula e ministros da Fazenda e da AGU decidem pela suspensão da medida que aumentava a fiscalização sobre o Pix
Diante de uma onda de informações falsas e dúvidas sobre a norma da Receita Federal que trata do monitoramento das movimentações financeiras, incluindo o Pix e outros meios de pagamento, como cartão de débito, o governo recuou.
Após uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou a revogação da instrução normativa do Fisco que havia entrado em vigor na virada do ano.
O Executivo vai editar medida provisória (MP) para reforçar que não pode haver diferença no valor cobrado em Pix e em dinheiro, que está mantido o sigilo bancário dessa modalidade de transferência de recursos, e rechaçar a taxação do Pix.
A decisão de Lula também foi uma resposta às críticas da oposição. O governo ainda vai buscar a responsabilização jurídica de quem espalhou fake news ou tentou aplicar golpes.
— Nos últimos dias, pessoas inescrupulosas distorceram um ato da Receita, causando pânico. Apesar de todo nosso trabalho, esse dano é continuado. Por isso, decidi revogar esse ato — disse o secretário da Receita, Robinson Barreirinhas, ao lado dos ministros Haddad e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).
Como tudo começou
A instrução agora revogada previa a transferência semestral, para a Receita, de dados de transações das operadoras de cartão de crédito (carteiras digitais) e das fintechs para movimentações acumuladas acima de R$ 5 mil por mês para pessoas físicas. Isso valia para o Pix e outras formas de transferência de recursos.
Antes, apenas bancos tradicionais eram obrigados a informar os dados.
A onda de fake news
A medida, no entanto, alimentou uma série de boatos e notícias falsas nas redes sociais sobre cobrança de imposto sobre o Pix, o que é vedado pela Constituição, segundo a Receita, e nunca foi cogitado. Houve também informações falsas circulando sobre fim do sigilo bancário e cerco da malha fina do Imposto de Renda a pessoas de baixa renda.
— O estrago está feito por esses inescrupulosos, inclusive senador e deputado federal agindo contra o Estado brasileiro — afirmou Haddad, referindo-se a líderes políticos da oposição que usaram o tema para atacar o governo nas redes.
O ministro da Fazenda reforçou mais de uma vez a necessidade de combater crimes e golpes. Haddad lembrou que, desde 2001, existe um regramento sobre as operações do Pix e que as fintechs fornecem informações voluntariamente.
Essas empresas, segundo Haddad, pediram para estar no guarda-chuva institucional da Receita e seguirão fornecendo dados.
— Queremos combater o crime organizado, o tráfico, os crimes cibernéticos? Precisamos de informações. Quais são as informações relevantes para combater o crime? Vamos chegar (nelas) — disse.
Queda nas transações
O recuo do governo vem também depois de O GLOBO mostrar, ontem pela manhã, que o número de transações do Pix registrou, nos primeiros dias de janeiro, a maior queda desde o lançamento do sistema de pagamentos instantâneos criado pelo Banco Central (BC), em novembro de 2020.
Levantamento com base nos dados do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI) do BC apontou que a quantidade de operações de Pix entre 4 e 10 de janeiro somou 1,250 bilhão, uma queda de 10,9% ante o mesmo período de dezembro. O levantamento compara a variação entre dois meses consecutivos desde a criação do Pix, em novembro de 2020.
Antes disso, o maior recuo no número de transações nesse intervalo havia ocorrido em janeiro de 2022 na comparação com o mês anterior (-7,5%). O intervalo de dias entre 4 e 10 concentra o maior volume de transferências de cada mês, já que inclui as datas em que a maioria dos salários é paga. Ou seja, esse período de análise ajuda a retirar a sazonalidade das movimentações.
No SPI, são liquidadas as operações de Pix que envolvem instituições diferentes. As transações que são liquidadas pelos próprios bancos e fintechs só são repassadas para o BC mensalmente.
Tradicionalmente, ocorre redução no número de transações Pix entre o início de dezembro e janeiro. No último mês do ano, há um componente sazonal forte, com a entrada do 13º salário e compras de Natal.
No início de 2025, porém, não só a queda ante dezembro foi mais forte, como o número de transações de 4 a 10 de janeiro ficou aquém do mesmo período de novembro, outubro e setembro de 2024.
Isso é atípico para o Pix, que virou sucesso absoluto e revolucionou a forma com que a população lida com o dinheiro. As transações pelo sistema crescem de forma praticamente ininterrupta desde sua criação. Além dos meses de janeiro de 2025, 2024, 2023 e 2022, o único recuo mensal, no período de 4 a 10 de cada mês, foi em julho de 2024.
Oficialmente, o BC afirma que a variação está dentro do esperado pelo efeito sazonal do início do ano. Haddad fez avaliação similarl:
— Em janeiro caem as movimentações do Pix na comparação com dezembro, é sazonal. Quando você considera a sazonalidade não tem havido problemas.
O que está em jogo?
O Pix foi um incentivo para muita gente abrir conta em banco. E essa bancarização têm sido puxada pelos bancos digitais, mas essas fintechs não eram obrigadas a compartilhar dados de operações de alto valor com a Receita. A norma cancelada fazia isso.
O Nubank ganhou 11 milhões de clientes, do fim de 2023 ao terceiro trimestre de 2024, para 98,8 milhões, segundo a empresa. O Mercado Pago, do Mercado Livre, ganhou 5,8 milhões de clientes no período, para 56,9 milhões, segundo o BC.
O Banco Original incorporou 5,7 milhões (para 58,7 milhões). Considerando CPFs únicos, 5,661 milhões de pessoas passaram a ter algum tipo de relacionamento com bancos entre 2023 e 2024, diz o BC.
Meio de pagamento mais utilizado
A norma da Receita tratava de todo tipo de operação financeira, mas, desde que foi lançado, o Pix cresceu sem parar. É o meio de pagamento mais usado do país, seguido pelo cartão de débito e pelo dinheiro em espécie, segundo pesquisa do BC divulgada em 2024.
Mensalmente, o número de operações pelo sistema digital criado em 2020 pelo BC beirava os 6 bilhões, até o fim do ano passado, com um volume financeiro de cerca de R$ 2,5 trilhões transacionados.
O recuo estratégico
A bola de neve de repercussão negativa levou Lula a chamar ministros às pressas ao Palácio do Planalto e alterar a agenda ontem. Na reunião, o presidente determinou a suspensão da medida. Lula disse aos auxiliares que queria uma forma de acabar com a mentira e tirar combustível da oposição.
Os ministros chegaram ao encontro irritados com a repercussão de um vídeo do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). A gravação ultrapassou 100 milhões de visualizações no Instagram e sugere que o aumento da fiscalização poderia representar no futuro a taxação de operações via Pix.
Com Lula, os ministros chegaram ao consenso de que era preciso criar uma norma que blinde o Pix, para evitar que o acesso gratuito seja posto em dúvida. O argumento foi que, se não houvesse recuo, a oposição seguiria criando um clima de desconfiança sobre o Pix.
O ministro Fernando Haddad, convocado juntamente com o titular da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, disse que a revogação da norma foi decidida pelo governo para “evitar distorção”:
— Mas a IN (instrução normativa), para não dar força às fake news, sai de cena para reforçar a gratuidade e o sigilo do Pix.
O ministro da Fazenda disse que vai dialogar com o Congresso para chegar a um “denominador comum” sobre o tema por meio da medida provisória. De acordo com ele, volta a valer o que estava em vigor
Fonte: O Globo