Royalties, uma passagem para o futuro?
Enviado Quinta, 13 de Junho de 2024.Estudo inédito do Ipea avaliou impacto sobre os municípios das compensações financeiras pela exploração de recursos naturais
Entre 2008 e 2021, as compensações financeiras pela exploração de recursos naturais (royalties) distribuídas aos municípios brasileiros saltaram de R$ 16,4 bilhões para R$ 32,3 bilhões - em valores atuais, em acordo com o caminho legal iniciado pelo Art. 20 da Constituição Federal e pela Lei nº 8.001 de 1991. As atividades econômicas de exploração de petróleo e gás natural, extrativismo mineral e geração de eletricidade a partir de recursos hídricos recolhem e distribuem royalties a todos os entes federados, em diferentes proporções. Os municípios são os maiores beneficiários.
Os royalties foram distribuídos para uma quantidade crescente de municípios ao longo do tempo. Em 2008, 50,7% dos municípios receberam algum tipo de royalty; em 2021, 65,5%. Essa realidade foi alterada pelo crescente número de municípios com atividade mineradora. Enquanto o número de cidades beneficiadas pelos royalties de recursos hídricos saltou de 649 para 739, e o número de beneficiadas pelos do petróleo, de 912 para 933, o número de beneficiadas pelos royalties da mineração saiu de 1.947 para 3.064. Em 2021, mais de mil municípios receberam combinações dos três tipos. Como já apontado, o volume financeiro também cresceu, alcançando a casa dos bilhões recebidos em alguns casos e as centenas de milhões em outros tantos.
Os royalties constituem receita originária do Estado Brasileiro, detentor das riquezas minerais e hídricas da nação. Eles representam, na letra fria e mundana da lei, um pagamento que os entes privados devem ao Estado pelo usufruto econômico dessas riquezas. O “espírito da lei”, contudo, é mais refinado: os royalties pretendem compensar gerações futuras pela degradação atual de uma riqueza que também lhes pertence, mas de natureza finita, e, pari passu, proteger as gerações atuais de se inebriarem com a opulência. O economista John Hartwick, em 1977, sugeriu que os royalties pela exploração de recursos naturais finitos fossem administrados para estabilizar os fluxos de renda intergeracionais por meio de aplicações que preparassem as comunidades afetadas (beneficiadas?) para a travessia inevitável entre a afluência e a penúria; toda jazida se esgota e todo rio seca. A lei brasileira encarna o espírito da “regra de Hartwick”.
Por esse preâmbulo, a pergunta que se impõe é: o Estado Brasileiro usa os royalties para comprar nossa passagem para o futuro? Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - encomendado pelo Ministério de Minas e Energia - tentou responder essa pergunta para o contexto específico dos municípios do país. Os autores, Rafael Leão, Danúbia Rodrigues, Cláudio Hamilton dos Santos e Rodrigo Rabelo, utilizaram técnicas econométricas de variáveis instrumentais em dados em painel para avaliar o efeito das receitas de royalties sobre as despesas municipais com funcionalismo, saúde, educação e investimentos entre os anos de 2008 e 2021, em termos per capita. Em outras palavras: o estudo avaliou se, na média, a prefeitura brasileira está comprando nossa passagem para o futuro.
O estudo é inédito por se tratar do primeiro esforço econométrico a avaliar o efeito geral, integrado e simultâneo dos três royalties, pois a literatura nacional e internacional que investigou os efeitos dos royalties sobre os municípios brasileiros se dedicou sobremaneira ao caso do petróleo e gás, mas pouco aos casos da mineração e dos recursos hídricos, ignorando possíveis efeitos cruzados e/ou combinados. Os autores abordaram o problema dessa forma, pois entenderam que o tipo de recurso natural que enseja a distribuição dos royalties, ainda que importante, não é o ponto central do debate, mas sim a destinação que o poder político constituído dá a esses recursos que possuem regras de aplicação mais flexíveis que as receitas derivadas da arrecadação tributária convencional e de outras transferências constitucionais, como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e o ICMS.
Os achados econométricos desse estudo apontam um cenário positivo, com nuances importantes. Entre 2008 e 2021, na média, os royalties do petróleo expandiram os gastos municipais com saúde, educação e investimentos enquanto os royalties da exploração mineral e dos recursos hídricos expandiram apenas os investimentos. Nenhum dos três tipos de royalties provocou aumento das despesas com funcionalismo.
Os autores esmiuçaram esses resultados estratificando os municípios entre grandes beneficiários (os 10% maiores recebedores, ano a ano) e os demais, pois a distribuição dos três tipos de royalties é extremamente assimétrica, com poucos municípios recebendo somas vultosas e uma vastidão recebendo valores ínfimos. Os resultados dessa estratificação evidenciam que os efeitos médios foram praticamente determinados pela dinâmica imposta pelos grandes beneficiários, sugerindo que os achados apresentados no parágrafo anterior surgiram apenas quando os volumes financeiros foram bastante elevados. Baixos volumes de royalties, portanto, podem não ter gerado um fluxo consistente de recursos para essas despesas.
O resultado mais expressivo encontrado foi o impacto positivo dos royalties nos investimentos municipais. Isso é suficiente para uma resposta positiva à pergunta proposta anteriormente? Infelizmente, não. Uma limitação importante desse estudo é sua circunscrição ao mundo das finanças públicas. Os autores não avaliaram indicadores de qualidade educacional, qualidade do sistema de saúde e efetividade dos investimentos públicos realizados, e a qualidade do gasto público é um tema importante e desafiador para o futuro próximo. Ademais, há todo um debate sobre a constituição de fundos soberanos subnacionais e outras inovações orçamentárias e financeiras que permitam o uso efetivo dessa importante riqueza. De qualquer maneira, é reconfortante encontrar sinais de esperança: é uma boa notícia que os royalties, em média, não sirvam apenas ao desperdício e a obras burlescas.
O estudo, o intitulado “O Impacto dos Royalties da Exploração de Recursos Naturais nas Finanças Públicas Municipais do Brasil: estimativas a partir de instrumentos Bartik modificados”, pode ser acessado no site do Ipea (bit.ly/3yVlyIq).
- Rafael Leão é especialista em políticas públicas e gestão governamental no Ipea
- Cláudio Hamilton dos Santos é técnico de planejamento e pesquisa do Ipea
Fonte: Jornal Valor Econômico - Por Rafael Leão e Cláudio Hamilton dos Santos