Sem reforma tributária, startups usam inteligência artificial para reduzir caos no sistema de impostos
Enviado Segunda, 08 de Maio de 2023.Empresas de base tecnológica crescem com modelos que automatizam cálculos e diminuem tempo gasto com burocracia
Com um dos sistemas tributários mais complexos do mundo, as empresas no Brasil gastam mais de 1.500 horas por ano somente com o pagamento de impostos, enquanto a média mundial é de 200 horas, segundo dados do Banco Mundial. Já os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — espécie de clube de economias desenvolvidas no qual o Brasil tenta entrar — gastam 159 horas, na média.
Esse mar de burocracia, com mais de 400 mil normas tributárias, é um clássico exemplo do ambiente que tira competitividade das companhias no Brasil que há muito tempo espera solução em uma reforma tributária. Enquanto ela não vem, amenizar esse problema virou missão — e uma oportunidade de negócio — de algumas empresas de base tecnológica, as startups.
A ideia é facilitar a vida de grandes e pequenas empresas no pagamento de tributos, na busca de certidões pelos cartórios do país ou na elaboração da contabilidade, reduzindo o número de pessoas e de horas gastas nessas tarefas. Com uso de robôs virtuais e inteligência artificial (IA), essas startups ainda eliminam erros e reduzem os casos de litígio tributário.
A reforma do sistema de impostos que o governo quer aprovar no Congresso neste ano pretende unificar tributos e tende a simplificar a vida das companhias, mas o campo de negócios para essas startups ainda vai continuar amplo mesmo se a emenda constitucional for bem-sucedida, dizem especialistas.
— A expectativa com a reforma tributária é de simplificação e mudança na forma de os brasileiros lidarem com a tributação. Mas antes teremos uma transição, que pode levar até dez anos. Então, o cenário vai piorar antes de melhorar — diz Paulo Roberto Andrade, sócio de Direito Tributario do Madrona Fialho Advogados.
Entre as startups desse ramo está a CBRdoc, que se define como um “shopping de documentos”. Nasceu há seis anos para desburocratizar a vida de empresas — e de pessoas físicas também. Ajuda bancos, financeiras, empresas de energia e do agro a obterem documentos em cartórios, no Ministério do Trabalho e em fóruns e prefeituras espalhadas pelos mais de 5,5 mil municípios do país. Um software que utiliza robôs numa plataforma digital busca os documentos solicitados.
A IA interpreta cada um deles e informa a empresa se o seu cliente está negativado, por exemplo, sem nem mesmo precisar abrir o documento. O segredo do negócio é ser acessível. A plataforma tem acesso gratuito, mas o cliente paga pela quantidade de documentos que precisa buscar, além dos custos do cartório, por exemplo.
Se uma empresa solicita 200 certidões no mês, sem taxas do emissor, pagará cerca de R$ 3 por documento. Se não usar a plataforma no mês seguinte, não há cobrança de mensalidade. São 50 funcionários.
— O tempo de busca de um documento, que é em média de três dias, cinco horas e 20 minutos no Brasil, caiu para um minuto e meio com o uso da nossa tecnologia. Fizemos uma pesquisa interna e chegamos a uma economia de até dez mil horas de trabalho dos clientes em um mês e redução em 90% do tempo de obtenção dos documentos — conta Rafael Galante, coCEO e que fundou a empresa com o economista Allan Mendonça.
A startup já testa o ChatGPT para realizar tarefas mais complexas. Entre elas, avaliar e calcular o valor atual de imóveis antigos em casos de litígio ou dívida. Embora não revelem números, os sócios dizem que a empresa já é lucrativa e não contou com investidores de risco (venture capital).
Com seis sócios de áreas distintas como economia, administração, contabilidade e tecnologia, a startup contábil e tributária Tax Strategy criou uma plataforma digital que reduz o tempo gasto com rotinas burocráticas. A ideia surgiu em conversas deles sobre a complexidade de pagar e apurar impostos no Brasil, além do tempo e do custo gigantesco para as empresas, particularmente as pequenas.
Elas inserem os dados na plataforma, que automatiza os cálculos. Só no ano passado, foram aferidos R$ 1,8 bilhão em impostos de empresas e prestadores de serviço clientes. Já são 30, entre eles empresas como Porsche, Acer e Souza Cruz.
— Geramos ganhos financeiros pela economia de tempo na execução de rotinas fiscais, garantindo que profissionais deste departamento possam atuar de forma mais estratégica no planejamento dos negócios da empresa — diz o CEO da Tax, Hélder Santos.
O serviço custa R$ 59,90, mensais. Os sócios investiram R$ 400 mil na criação do negócio, em 2020. Agora, o Sebrae e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) estão aportando R$ 500 mil para que a Tax desenvolva projetos usando IA capazes de dar “sugestões” de gestão, por exemplo. Com esses recursos, 15 pessoas, entre pesquisadores e desenvolvedores, se juntaram aos dez funcionários da startup.
— Antes, eu mesma fazia a contabilidade numa planilha. Gastava uma tarde, tinha chance de errar. Agora, coloco os dados na plataforma e, em segundos, tenho a apuração — conta Juliana Camargo, contadora da GAC, consultoria de inovação que tem 48 funcionários e usa a plataforma da Tax Strategy há um ano. — No ano passado, passamos por uma auditoria e não houve erros na contabilidade.
O dia de fazer a folha de pagamentos de funcionários é considerado o “pior do mês” em termos de burocracia, com apuração de FGTS, INSS, descontos. Com essa queixa comum das empresas na cabeça, a BHub nasceu para ser uma plataforma de gestão administrativa por assinatura, ou backoffice as a service, como se chama a forma de terceirizar esse departamento com o uso de tecnologia.
Nasceu em 2021 e tem 600 clientes, sendo 35% outras empresas de tecnologia e 30% comércio eletrônico. A startup de 210 funcionários recebeu aportes de R$ 180 milhões de fundos como Valor e Monashees, além de empresas como iFood, Vtex, Ualá e Rappi.
— Hoje, oferecemos mais de 400 processos de gestão automatizados. Ainda não estamos no break-even (equilíbrio entre receita e despesas), mas temos R$ 140 milhões em caixa para a operação nos próximos cinco anos — diz Jorge Vargas Neto, um dos fundadores, ao lado de mais três sócios.
Os preços para o serviço variam de R$ 900 a R$ 2 mil, mas há uma versão gratuita da plataforma, que pode ser acessada pela empresa para gerir o caixa.
Para Bruno Diniz, CEO da consultoria de inovação Spiralem, enquanto houver ineficiência no sistema tributário haverá oportunidades de negócio. Ele acredita que, mesmo com a reforma tributária, o campo para essas startups que buscam driblar a burocracia sempre será fértil.
— A reforma tributária pode simplificar o sistema, mas o tamanho da burocracia é sempre muito maior que o pacote de soluções —diz Diniz, que observou uma aceleração na digitalização de documentos na pandemia. — Hoje, estima-se que mais de 90% dos processos judiciais sejam digitais.
O advogado Paulo Roberto Andrade, do Madrona Fialho Advogados, observa que a complexidade do sistema tributário brasileiro é das maiores, senão a maior, do mundo. Primeiro, porque trata-se de um país de grande extensão. E aqui há uma peculiaridade, diferente de outros países: a Constituição deu competência tributária a estados (que tem o ICMS como principal imposto) e municípios (que cobram ISS, o Imposto Sobre Serviços).
— Em países como o Canadá, por exemplo, é a União que tem a competência tributária. Recolhe os impostos e depois distribui —diz o advogado, que é um entusiasta da reforma tributária e acredita que ela está politicamente madura para ser aprovada.
Mas ele observa que, mesmo com a fusão de cinco tributos — a proposta do governo deve unir IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o equivalente ao Imposto sobre Valor Agregado (IVA) de outros países —, a fiscalização continuará fragmentada. Haverá um comitê gestor na transição, com representantes de União, estados e municípios — e cada um será responsável por fiscalizar seu “quinhão” no novo imposto, aponta Andrade:
— Perde-se a oportunidade de avançar na simplificação porque cada estado e cidade terá que manter seu aparato fiscalizatório, o que significa mais custo, especialmente para municípios pequenos
Fonte: Jornal O Globo