Consensualidade na reforma tributária e a transação do IBS
Enviado Quinta, 10 de Julho de 2025.Caberá ao Comitê Gestor apenas coordenar a adoção dos métodos de solução adequados, desde que estes não adentrem em pontos que são de competência exclusiva de cada um dos sujeitos ativos.
Visando simplificar a tributação sobre o consumo, a EC 132/23 implementou um IVA dual, instituindo dois tributos - CBS e IBS - que compartilham regras absolutamente comuns1 sobre: fato gerador, base de cálculo, sujeição passiva, regimes específicos, não cumulatividade etc. Essa uniformização representa indiscutível avanço em direção à redução da complexidade.
Mas, para que se alcance a efetiva simplificação e a segurança jurídica, não basta que o ordenamento que regulamenta os novos tributos seja único. Pelo contrário! É indispensável que a sua interpretação pela(s) administração(ões) tributária(s) e o julgamento dos conflitos resultantes sejam realizados pelo menor número possível de órgãos -- idealmente, por um só2.
Na prática, se forem diversos os órgãos, ingressaremos num cenário em que o contribuinte estará submetido a inúmeras interpretações distintas - da União, dos Estados e dos municípios -, uma vez que tributação ocorre no destino.
Analisando as regras de fiscalização, lançamento e cobrança do PLP 108/23, em trâmite no Congresso Nacional, verifica-se que é justamente isso o que vai acontecer. Isso porque, a teor do art. 2º, VI, alíneas "a" e "b", a fiscalização, o lançamento e a cobrança competem as administrações tributárias dos Estados, do DF e dos municípios. Em consonância, a cobrança judicial e extrajudicial do IBS será realizada pelas Procuradorias dos Estados e do DF, embora a EC 132/23, em seu art.156-B3 tenha atribuído a decisão do contencioso administrativo ao Comitê Gestor.
E já sabemos, pela nossa experiência, que não faltarão disputas a serem resolvidas, especialmente relacionadas as classificações de bens/serviços e alíquotas, em razão dos Regimes Especiais e Diferenciados, assim como competição para atrair CPF's e CNPJ's, para vincular ao território municipal ou estadual, com o objetivo de obter receita, visto que a tributação se dará no destino.
Portanto, ao que parece, haverá aumento do contencioso e complexidade àquele contribuinte que fornece produtos a várias unidades da federação, pois, como a fiscalização e a cobrança se darão no destino, é possível que venham a existir dezenas ou centenas de interpretações diferentes sobre a mesma operação. No entanto, visando minimizar essa litigiosidade excessiva, compreende-se que as regras de solução de controvérsia no âmbito administrativo, especialmente, deverão levar em conta a similaridade do IBS e da CBS.
Neste sentido, não podemos esquecer que o CPC de 2015 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma nova cultura de resolução de conflitos: trata-se da ideia de que o Poder Judiciário não é a única opção para encerrar disputas jurídicas, destacando valores como o da cooperação4 e da busca pela consensualidade.
O CPC de 2015, na prática, inaugurou o que se chama de sistema "multiportas" de métodos de auto e heterocomposição. Em linhas gerais, a expressão "multiportas" se traduz no sentido de que não se coloca uma simples alternativa à atividade jurisdicional, mas sim um conjunto de métodos compostos de diferentes técnicas que são integradas ao modelo tradicional5. É nesse ambiente normativo que foram introduzidas significantes inovações resolutivas de conflito em matéria tributária, como o Negócio Jurídico Processual, a transação e a mediação tributária.
Da mesma forma as resoluções do CNJ 471/22 e 547/24, reforçaram as iniciativas de redução da alta litigiosidade, mediante a implementações de soluções adequadas para conflitos tributários.
Nesse contexto, insere-se a lei 13.988/20, que instituiu a transação tributária no âmbito federal, permitindo, dessa forma, a resolução consensual de conflitos entre fisco federal e contribuinte. Trata-se de uma política pública que tem se consolidado como um dos mais eficientes métodos autocompositivos de resolução de conflitos em matéria tributária. Diante do seu sucesso no âmbito federal, ela tem servido de inspiração para outros entes federados.
Por isso, o aprimoramento dos meios consensuais de solução de litígio, atualmente, integra a atuação da maior parte das procuradorias fiscais estaduais e municipais. Hoje, dos 27 estados, 16 já editaram suas leis de transação, especialmente após o Convênio Confaz 210/23. Há, ainda, iniciativas inovadoras em âmbito municipal, como a lei de transação do município de Blumenau (lei 8.532/17) e a lei de mediação tributária do município de Porto Alegre (lei 13.028/22), com resultados exitosos comprovados.
Em que pese o sucesso da transação, a legislação que implementou o novo sistema tributário sobre o consumo nada disciplinou acerca dos métodos adequados de resoluções de conflitos em matéria tributária. Inclusive, mesmo diante de potencial aumento de litigiosidade, a legislação foi completamente omissa. Frisa-se: a EC nada referiu, e o PLP 108/24 apenas dispôs em seu art. 2º, IX7, que caberia ao Comite Gestor coordenar, a adoção dos métodos de solução adequada de conflitos relacionados ao IBS entre os entes federados e os sujeitos passivos e estabelecer a padronização dos critérios para sua realização, observado o disposto em lei específica.
No entanto, compreendo que a nova legislação deveria dispor expressamente sobre o incentivo às legislações já existentes e aos projetos de lei em tramitação no Senado, que tratam da reforma do processo tributário, dialogando diretamente com os meios de autocomposição de conflitos.
Sabe-se que as discussões legislativas referentes à regulamentação da reforma tributária do consumo e aquelas relacionadas à modernização do processo tributário tramitam de forma paralela e independentes no Congresso. Contudo, é imprescindível que dialoguem entre si, especialmente o PLP 124/22 que "dispõe sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária".
Mas, é fato que a reforma nada dispôs sobre os métodos autocompositivos, sendo que, talvez, tal omissão se dê em razão do enorme desafio de implementar métodos adequados de prevenção e resolução de conflitos idênticos, visto que, a depender da forma estabelecida pelo legislador, poderíamos não conseguir manter a autonomia dos entes federados distintos, os quais, a partir de agora, exercerão sua competência tributária de forma compartilhada.
No modelo pré-reforma tributária, cada ente federado tem suas próprias leis de transação, garantindo, dessa forma, o exercício da sua competência tributária privativa. Após implementação da reforma tributária, por outro lado, para a instituição de uma transação tributária de IBS, será necessária uma única LC ou cada ente subnacional poderá ter sua própria lei ordinária de transação? De quem será a competência para introduzir no ordenamento jurídico lei de transação do IBS e da CBS e quem terá competência para transacionar?
Cumpre lembrar que até a EC 132/23, o exercício da competência tributária se dava por lei ordinária, excepcionalmente por meio de leis complementares, no caso de empréstimos compulsórios (competência residual), mas nestes casos era lei complementar federal, no exclusivo interesse da União, no exercício de sua competência privativa.
Agora, estamos diante de uma LC nacional que cria o Imposto (IBS), de competência compartilhada dos Estados, o DF e municípios, e institui uma regra-matriz de incidência tributária com quase todos seus critérios constitutivos, a exceção da alíquota - cuja fixação dar-se-á mediante lei específica de cada uma das pessoas políticas competentes. Ocorre que, na prática, ao que parece com o IBS, os Estados e os municípios não terão mais direito de escolha. Assim, questiona-se: estamos diante de um novo conceito de federalismo ou a EC 132/23 agride o federalismo estabelecido pelo legislador constituído de 1988?
Cumpre ressaltar que na visão de Luís Cláudio Ferreira Cantanhede e Lázaro Reis Pinheiro Silva9, a competência para editar os veículos introdutores das normas gerais e abstratas prescritoras das condições e termos que se poderá celebrar uma transação tributária é do mesmo sujeito incumbido de produzir normas gerais e abstratas mediante as quais foi posta a regra-matriz de incidência tributária. Ou seja, seria do legislador complementar nacional.
Entretanto, havendo consenso em torno da solução do conflito tributário, o termo de transação deveria ter como parte, além do sujeito passivo da obrigação tributária, o mesmo ente da Administração Pública até então incumbido de promover a cobrança do crédito. E pela regra do art. 2º, VI, "a" e "b", do PLP 108/24, a cobrança do crédito tributário será feito pelas administrações tributárias dos Estados, do DF e municípios, e respectivas Procuradorias.
Neste contexto, ainda que tenhamos uma lei complementar instituidora do IBS - com normas gerais de transação, regras que tratam dos compromissos de renúncia e desistência de ações em curso, modalidade passíveis de transação, hipóteses de rescisão, previsão de parcelamento entre outras questões - entendo que a fixação dos parâmetros de descontos e compensação com créditos e precatórios, por exemplo, é de competência exclusiva de cada ente federativo, a depender da sua realidade econômico-financeira. Do contrário haverá desrespeito à autonomia federativa e, consequentemente, violação ao pacto federativo - que é clausula pétrea, nos termos do § 4º, do art. 60 da CF/88.
Frisa-se que o sujeito ativo do IBS é cada um dos entes federados, em relação aos quais o Comitê Gestor servirá como órgão centralizador para o exercício da competência compartilhada, apenas para administrar o IBS, arrecadando, distribuindo aos entes e devolvendo aos contribuintes. Mas este órgão é destituído de legitimidade para criar, decidir, alterar ou extinguir direitos e deveres, cabe apenas operacionalizar as concessões recíprocas transacionadas entre entes e contribuintes10.
Assim, entendo que caberá ao Comitê Gestor tão somente coordenar a adoção dos métodos de solução adequada e padronizar os critérios para sua realização, desde que estes não adentrem em pontos que são de competência exclusiva de cada um dos sujeitos ativos, como disposto supra.
Para a transação do IBS, portanto, entendo que será necessário a edição de dois regramentos: (i) uma lei complementar nacional, uniforme e única, com regrais gerais do instituto; e, por outro lado, (ii) uma lei específica, de cada ente, disciplinando o alcance máximo das concessões a fim de resguardar a autonomia federativa.
Em que pese o presente artigo tenha como foco a transação, considero que o mesmo entendimento se aplica para a adoção de quaisquer outros métodos adequados de resolução de conflitos, razão pela qual, infelizmente, o tema da consensualidade na reforma tributária está longe de ser implementado.
Não restam dúvidas, portanto, que o processo de implementação dos novos tributos, inevitavelmente, acarretará inúmeras inseguranças aos contribuintes e aos próprios entes federativos. Além disso, a simplicidade tão almejada pela reforma parece, neste momento, ser uma grande utopia.
Fonte: Migalhas