Reforma visa a melhora do serviço público
Enviado Terça, 08 de Julho de 2025.Projeto deve cortar supersalários, mas manter estabilidade, defende Ana Carla Abrão
A reforma administrativa deve garantir as condições para melhorar o serviço público, avalia a economista Ana Carla Abrão, autora, ao lado de Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e Carlos Ari Sundfeld, professor de direito da FGV, de uma proposta de reforma do RH do Estado brasileiro. “Por que em empresas privadas se exige ótimo desempenho e no setor público não, se a própria Constituição já prevê isso?”, questiona.
Corte de salários, demissões e fim da estabilidade devem ficar fora da reforma. Entram mudança no processo seletivo, no modelo de carreiras e na avaliação de desempenho. É preciso engajar sindicatos e funcionários para aprovar uma reforma que valorize o servidor e aumente a produtividade, defende Abrão. “A reforma do serviço público é uma reforma de carreiras”, diz a economista, hoje diretora-presidente da Open Finance Brasil. Leia a entrevista.
Valor: Presidentes dos grandes bancos defenderam que o governo adote medidas para corte de despesas. A reforma administrativa poderia contribuir para essa redução?
Ana Carla Abrão: São temas diferentes. A reforma administrativa não é um tema fiscal. Ela pode vir a dar ganhos de eficiência fiscal lá na frente, mas isso não deveria ser objetivo principal. A única medida com impacto de curto prazo seria a aplicação do teto constitucional para remuneração de servidores, porque corta salários no topo. As demais são mudanças estruturais, mas com impacto significativo porque permitirá investimentos em capacitação - e hoje não há investimento no desenvolvimento profissional. Quem mais tem a ganhar com a reforma administrativa é o próprio servidor. O problema é vincular a reforma à questão fiscal porque significaria cortar salário ou demitir e essa é uma mensagem que cria resistência. O que precisamos é garantir apoio político em um processo que envolva sindicatos. É preciso ficar claro que não está se falando de corte de salários, de demissões e de acabar com a estabilidade. Está se falando de melhorar as condições para prover melhor o serviço público.
Valor: Como obter essa melhora?
Abrão: A reforma do serviço público é uma reforma de carreiras. É muito difícil fazer uma reforma que não vá mexer com supersalários, porque o problema do serviço público são os salários do topo, e não os da base, que são baixos. É onde estão o professor da rede pública, o médico do SUS e o policial. Precisamos reformular todo o processo de contratação, avaliação, produção e, eventualmente, o de demissão por baixo desempenho. Ela tem que começar pelo processo de seleção, que hoje é antiquado, vinculado a concursos que não necessariamente conseguem selecionar as pessoas que vão construir o serviço público do futuro.
Valor: Qual seria o processo adequado de seleção?
Abrão: Um que também passe por avaliação de competências. As mesmas que se tem para avaliar contratações no setor privado deveriam ser capazes de avaliar o setor público. Também temos o serviço temporário no setor público, que está muito precarizado. Outro aspecto fundamental é o da revisão de carreiras. Hoje, temos 300 carreiras do serviço público federal, 180 em nível estadual, dezenas no municipal.
Valor: A quantidade de carreiras cresceu 319% entre 1970 e 2019...
Abrão: Um absurdo. Precisamos racionalizar isso. Uma vez revisadas as carreiras, teremos mais mobilidade. Hoje, temos um assistente administrativo do Ministério da Educação e outro no da Saúde, e essas pessoas não podem ser movidas porque fizeram concurso para aquela carreira, aquele lugar - e às vezes sobra pessoal em um órgão e em outro falta. A reforma deve mudar o modelo de seleção, de carreiras e outro muito importante, o de desempenho. Fala-se em acabar com estabilidade, mas a Constituição prevê a demissão, inclusive por baixo desempenho. Precisamos regulamentar isso. No mundo inteiro temos exemplos de sucesso de modelos de avaliação no setor público. Por que em empresas privadas se exige ótimo desempenho e no setor público não, se a própria Constituição já prevê isso? Quando se abrange revisão de carreira, processos de seleção, avaliação e corte de supersalários, já se permite fazer uma super reforma com um impacto muito relevante.
Valor: O projeto do grupo de trabalho sobre reforma administrativa, coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), contempla as questões necessárias?
Abrão: Não estou acompanhando, mas o que ouço é que vão fazer medidas infraconstitucionais que vão melhorar. Talvez o supersalário saia porque tem impacto fiscal. A maioria dos servidores está fazendo um serviço de qualidade. O deputado Pedro Paulo é super habilidoso.
Valor: O Brasil tem 12% dos trabalhadores alocados no setor público, índice similar ao da média da América Latina (12,5%) e menor do que o dos países da OCDE, de 18%, mas o custo em relação ao PIB no Brasil é bem maior...
Abrão: O problema não é o total de servidores. A despesa com pessoal é muito acima do que se observa em outros países e isso precisa ser atacado, porque essa despesa não está se refletindo no melhor serviço público e nem no bem-estar dos servidores. Os dados não significam que ganham mais que os seus pares no setor privado; alguns ganham muito, e muitos ganham pouco. O [economista] Ricardo Paes de Barros fez estudo mensurando a desigualdade de renda no setor público. É o dobro da desigualdade brasileira. Isso há uns dez anos, deve ter piorado.
Valor: Mais da metade dos funcionários públicos no Brasil está nas prefeituras, recebendo menos que R$ 2,8 mil. Como levar a reforma aos municípios?
Abrão: Uma das formas é vincular empréstimos, convênios do governo federal com Estados e municípios, a uma reforma administrativa. O que for aprovado no nível federal - revisão em número de carreiras, processo seletivo, avaliação de desempenho - deve ser adotado por municípios. Empréstimos que venham a pedir estariam vinculados à reforma.
Fonte: Valor Econômico