‘Ou se faz alguma coisa, ou o País vai parar’, diz Salto, sobre as contas do governo
Enviado Terça, 10 de Junho de 2025.Para o economista, medidas anunciadas pelo governo são positivas por amenizar situação ‘muito grave’, mas estão longe de resolver o problema fiscal estrutural
Para o economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, especialista em contas públicas, o anúncio das medidas fiscais feito na noite de domingo foi uma evolução que pode amenizar a crise fiscal, caso seja levado adiante. O ponto alto das medidas, em sua opinião, foi trazer de volta à mesa a revisão dos gastos tributários. O ponto fraco foi não ter havido cortes nas despesas públicas, seja por parte do governo, seja pelo Congresso.
Salto afirma que o Congresso é essencial nessa discussão e precisa assumir seu papel. “Vivemos uma espécie de parlamentarismo branco, com o Congresso querendo apenas a parte boa. Agora, quando nem o possível o Congresso parece estar disposto a apoiar, aí fica muito complicado.
A situação está tão grave, diz ele, que “ou se faz alguma coisa, ou o País vai parar”. “Essa é a verdade”, afirma. “Há um risco muito alto do chamado shutdown (apagão) da máquina pública acontecer já no ano que vem, se não houver mudanças. Se o Congresso não aprovar as medidas, a meta fiscal do ano que vem vai ter de ser alterada. Isso vai gerar mais confusão, vai pressionar a curva de juros e vai produzir mais custos para a sociedade como um todo.”
Salto diz que, tecnicamente, as medidas não são as ideais. Só que a política é a arte do possível, afirma, e as medidas são “inescapáveis”. Por isso, “tem de aprovar. Isso é o mínimo — e nem vai ser suficiente ainda".
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O anúncio do pacote, feito em conjunto pelo governo e por lideranças do Congresso, foi uma evolução em relação à proposta inicial de aumento do IOF?
Houve um avanço, sim, porque o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está praticamente sozinho na luta pelo ajuste fiscal. O Congresso, apesar do aparente rompante fiscalista, fez o oposto: quis enquadrar o Ministério da Fazenda, colocando o prazo de 10 dias para uma solução. O anúncio feito ontem (domingo), porém, não teve qualquer contribuição do Congresso, que não mexeu em um centavo nas emendas parlamentares ou em qualquer outro gasto. Foi positivo que se tenha conseguido avançar com algumas medidas, mas a minha preocupação é que elas podem ainda não ser suficientes para o que a gente precisa.
A conta não fecha?
Sim. Por exemplo, há uma incerteza muito grande sobre qual será o volume captado com essa tributação das bets, que já são tributadas em 12%. Também tem a questão da anterioridade tributária, já que boa parte das medidas só vão valer para o ano que vem. Por outro lado, a revisão dos gastos tributários foi o ponto alto. Esse tema é um tabu. Os governos anteriores que tentaram fazer alguma coisa sempre esbarraram nas pressões para derrubar isenções, como a do Simples Nacional, da Zona Franca, das instituições filantrópicas, da cesta básica... Parece que a escolha foi deixar de fora esses temas mais polêmicos e priorizar o restante, que é bastante coisa, dá uns R$ 250 bilhões. Se for efetivo o corte de 10% disso, dá uns R$ 25 bilhões, R$ 26 bilhões. É bastante coisa. Além disso, há ainda o JCP (Juros sobre Capital Próprio), que eles voltaram a falar em aumentar de 15% para 20%. São medidas importantes, mas elas não são suficientes para resolver o problema fiscal. Até porque faltou mexer do lado da despesa pública, que é o ponto fraco do anúncio.
Como fica o déficit no curto prazo?
Todas as medidas estão focadas em 2026, porque a maioria delas não vai valer de imediato. Mesmo com a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), que deve ser majorada para 15% sobre aquele conjunto de instituições que hoje tem uma alíquota de 9%, será preciso respeitar a noventena. Se fosse aprovada hoje, valeria para os últimos três meses do ano. O problema é menor porque o volume de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) que o governo estava considerando era algo como R$ 20 bilhões, e na nossa conta a gente considera R$ 15 bilhões. Pelo que foi sinalizado, a reversão do IOF não vai ser tão drástica. Por exemplo, ele vai mexer na parte fixa da alíquota das empresas, mas a parte variável vai continuar com o aumento proposto. O risco sacado, que são descontos de duplicatas, não vai voltar à estaca zero, também vai permanecer alguma tributação sobre isso. Na verdade, o governo ainda vai continuar contando com o IOF, para esse ano principalmente.
E o ano que vem?
Para o ano que vem, o efeito das medidas será maior, mas ainda será preciso essa ajuda do IOF. A situação em 2026 é mais grave porque, na nossa conta, considerado o cenário atual do IOF, seria preciso fazer um contingenciamento de R$ 46,8 bilhões. Não há espaço para isso porque a despesa discricionária ficaria inferior ao limite mínimo para o funcionamento da máquina pública. A situação é muito grave. As medidas são positivas, amenizam essa situação muito grave, mas estão longe de resolver o problema fiscal estrutural.
São paliativas?
Não diria paliativas, porque têm efeitos permanentes. Mas, enquanto não mexer do lado do gasto, ainda será um ajuste incompleto porque a carga tributária já é bastante elevada. Não há mais tanto espaço para se resolver o problema aumentando a tributação.
Representantes do agro já vieram a público dizer que as LCAs (Letras de Crédito Agrícola) não devem ser tributadas, bem como do setor de criptoativos, imobiliário e das fintechs. O governo conseguirá resistir à pressão?
São reações esperadas porque ‘farinha pouca. meu pirão primeiro’. Nunca esse ditado valeu tanto. Todo mundo é a favor de revisar o gasto tributário, mas, quando começa a mexer, os beneficiados começam a chiar. O setor do agronegócio, por exemplo, paga pouquíssimo tributo e ainda tem incentivo. As LCA, LCI (Letras de Crédito Imobiliário), o CRI, o CRAS (Certificados de Recebíveis Imobiliário e Agrícolas), debêntures incentivadas e correlatos vão continuar super incentivados (com menos impostos para receberem aplicações de investidores), com uma tributação bem inferior aos 17,5% que vão incidir sobre outros tipos de investimento. Essa reação é esperada, mas o governo, com o apoio do Congresso, tem de resistir.
O presidente da Câmara, Hugo Motta, afirmou que não há o compromisso do Congresso de aprovar as medidas anunciadas. O sr. acredita que elas irão passar?
Sinceramente, não consigo entender. Foi feita uma reunião em que o presidente Hugo Motta colocou o ministro da Fazenda na parede, o que é inédito na história. Aí aconteceu uma segunda reunião em que o Haddad apresentou medidas. Ele e os líderes saem do encontro dizendo que estão de acordo. Ato contínuo, Motta diz não ter compromisso com as medidas. Aí fica muito difícil. Vivemos uma espécie de parlamentarismo branco, com o Congresso querendo apenas a parte boa. Quer participar do orçamento, quer garantir R$ 50 bilhões de emendas — e já tem R$ 52 bilhões aprovados para o ano que vem —, por exemplo, no PLDO (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias). Quer aprovar a desoneração da folha sem dizer quem paga a conta, quer manter as renúncias fiscais, quer proteger a Zona Franca... Quer dizer, o Congresso não está disposto a fazer ajuste fiscal. O Congresso é fundamental nesse compromisso que foi firmado. Se titubear, vai tudo por água abaixo. As medidas, tecnicamente, não são as ideais. Eu mexeria na vinculação da saúde e educação, no Fundeb, no Plano Safra (que tem uma fábula de dinheiro para equalização de juros), no subsídio de subvenções, na indexação da previdência ao salário mínimo, no abono salarial. Só que a política é a arte do possível. Agora, quando nem o possível o Congresso parece estar disposto a apoiar, aí fica muito complicado. Não dá para agradar a todo mundo sempre. E o Congresso parece que tem esse anseio de querer agradar a todos os setores a todo momento. Isso é impossível, principalmente com uma situação fiscal em que a dívida está crescendo a olhos vistos. Ou se faz alguma coisa, ou o País vai parar. Essa é a verdade. Há um risco muito alto do chamado shutdown da máquina pública acontecer já no ano que vem, se não houver mudanças. Se o Congresso não aprovar as medidas, a meta fiscal do ano que vem vai ter de ser alterada. Isso vai gerar mais confusão, vai pressionar a curva de juros e vai produzir mais custos para a sociedade como um todo.
O custo seria maior do que adotar essas medidas agora?
As medidas são inescapáveis. Tem de aprovar. Isso é o mínimo — e nem vai ser suficiente ainda. São medidas que estão focadas do lado da receita, mas o gasto tributário, por exemplo, é uma coisa inédita. O Paulo Guedes tentou com a Emenda Constitucional 109, o artigo 4º, colocar na Constituição uma revisão do gasto tributário. O Executivo enviou o projeto, no governo anterior. O Congresso sentou em cima e engavetou o projeto. Os gastos tributários atingiram um nível que é insustentável. Todos os setores têm um pedacinho desse gasto tributário: as filantrópicas, o agronegócio, os abatimentos dos gastos médicos no imposto de renda das pessoas físicas. Ficou faltando o lado da despesa, e eu imagino porque eles não encontraram consenso. Era uma oportunidade para avançar nisso. O Haddad disse que, ao longo dos próximos dias, eles ainda vão negociar essa questão do ajuste do lado dos gastos. É muito importante. As contas que a gente fez inicialmente, antes de ver os detalhes, estavam mostrando um volume de arrecadação até considerável.
De quanto?
Caso as medidas sejam aprovadas, o efeito em valores brutos para 2026 será da ordem de R$ 44,2 bilhões. A parte que ficará para a União girará em torno de R$ 30 bilhões.
Há uma conta do impacto dessa majoração de impostos para a população?
No primeiro trimestre, a economia ainda estava aquecida. A desaceleração já está contratada com a taxa de juros que temos e que não tem saída, já que a expectativa de inflação está acima da meta para os próximos 12 meses. Essa mudança de tributação que está sendo feita vai ser decisiva para mudar essa tendência. A economia vai crescer em torno de 2,3% este ano e, no ano que vem, por volta de 2%, o que também não é o fim do mundo. É menos do que cresceu na média do primeiro biênio, mas não há como atender a todos os objetivos de uma vez só. O momento é de contração fiscal, seja pelo lado da receita, reduzindo a renda disponível, seja pelo lado do gasto, que infelizmente ainda não veio nada.
De maneira geral, sua avaliação é positiva?
Sim, o governo está na direção certa: é o que foi possível de ser feito. Falta muito, principalmente porque faltou o lado do gasto, nem nas emendas parlamentares, que o próprio presidente Hugo Motta tinha dito que estava disposto a cortar, nem nas outras ações. O Fundeb, por exemplo, multiplicou por quase duas vezes e meia. O percentual para este ano será de 23%. Inicialmente era 10%. Então já está mais de duas vezes o que era quando foi aprovada na legislação. Nós não estamos aqui falando de cortar gastos, estamos falando de conter o crescimento. A mesma coisa vale para a questão da indexação ao salário mínimo, para todas as outras agendas que eu mencionei.
Fonte: Estadão - Entrevista com Felipe Salto