Reforma administrativa tem de mirar eficiência e valorizar servidor, diz Claudia Costin

Enviado Segunda, 28 de Abril de 2025.

Claudia Costin defende maior uso de estágio probatório e que funcionalismo tenha salário competitivo com setor privado

A reforma administrativa não deve ser guiada por questões exclusivamente fiscais, mas por maior valorização dos servidores e eficiência do setor público, afirma Claudia Costin, ex-ministra da Administração e Reforma do Estado no governo Fernando Henrique Cardoso.

Em entrevista ao Valor, Costin defende que os salários do setor público sejam tão altos e competitivos quanto os do setor privado e que o estágio probatório seja mais utilizado para a avaliação do desempenho dos estatutários.

“Ter funcionários de carreira razoavelmente bem remunerados permite uma continuidade de políticas que têm de ser de Estado, e não de governo”, diz Costin, que foi diretora global de educação do Banco Mundial e membro da Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ela alerta, contudo, que “profissionalizar a máquina pública é um processo, não é uma coisa que se resolve em um ou dois governos”.

Ex-professora visitante da Universidade Harvard, Costin lecionou também na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no Insper e na École nationale d’administration publique (Enap), no Canadá, e é considerada uma das maiores especialistas em educação do país.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: Vivemos um momento de intenso debate sobre reforma administrativa. Comparando com a época em que esteve no governo para cuidar disso, quais eram e quais são as necessidades hoje? E desafios?

Claudia Costin: Existiam algumas características daquela época que precisavam ser transformadas e que não são as mesmas de hoje. Em primeiro lugar, havia uma desqualificação de parte importante dos servidores do governo federal, uma certa desprofissionalização. Os servidores trabalhavam apenas seis horas por dia, porque provavelmente não se queria dar aumento salarial a eles. Mas isso, em um certo sentido, desprofissionaliza. O resto dos trabalhadores de nível superior trabalhava oito horas por dia. A frequência era muito baixa, o absenteísmo era alto. E, ao mesmo tempo, havia uma rigidez que a Constituição trouxe que foi importante, mas que não era importante para todas as atividades. Por exemplo, a Constituição dizia que era obrigado [o servidor] ser brasileiro nato ou naturalizado. Isso para as universidades era um desastre. A internacionalização ficava prejudicada, havia dificuldade de se fazer parcerias.

[Luiz Carlos] Bresser Pereira teve papel de liderança muito importante nisso tudo, de criar um plano diretor da reforma do aparelho do Estado. E esse plano diretor, em vez de estabelecer regras rígidas para tudo, olhou para diferentes áreas de atividade do Estado. Por exemplo, a formulação de políticas públicas, a responsabilidade para a coordenação nacional de políticas públicas ou até atividades em que se precisa de alguma flexibilidade, em que existe um certo poder de regulação ou de exercício de poder de polícia. Era preciso ter agências ou autarquias, mas com funcionários públicos de carreira. Não havia agências reguladoras e havia uma privatização de algumas atividades. E aí como é se evita a formação de oligopólios ou monopólios?

E para atividades que não são típicas de Estado, como no setor da cultura, como nos museus nacionais em que o curador não precisava ser um funcionário de carreira, podia-se ter algum tipo de parceria público-privado.

Também na época do Bresser como ministro e eu como secretária-executiva, foi criada uma emenda constitucional que permitiu a figura das organizações sociais. A primeira delas foi na área de pesquisa. Depois, na área de saúde, com hospitais privados podendo ser certificados como organizações sociais, como acontece na França, por exemplo.

Ao mesmo tempo, para profissionalizar, restabelecemos o [contrato] de oito horas e atualizamos uma carreira de gestor de políticas públicas, que depois virou especialista em políticas públicas e gestão governamental, que era uma carreira com um salário bem mais alto para atuar em qualquer ministério. Reformatamos essa carreira que havia sido aprovada em 1987 para algo mais dinâmico, com concurso bastante competitivo, com salário bem interessante e uma etapa de formação desses servidores. Essa ideia não foi inventada por nós, porque a Receita Federal já tinha isso para os seus agentes, uma etapa do concurso na escola fazendária, como chamavam. Nós fizemos isso para os especialistas em políticas públicas, mas também para o pessoal do Tesouro e do controle interno. Então, as carreiras típicas de Estado tiveram uma requalificação, inclusive a da Polícia Federal.

Houve um esforço que olhava, por um lado, para uma certa flexibilidade que pode ter causado estranhamento e, por outro, uma organização das carreiras e concursos anuais. Essa foi uma discussão que tive após o PT assumir. No comecinho do governo Lula [em seu primeiro mandato], eles pararam todos os concursos, e nós fizemos um cálculo para que todo ano houvesse concurso. De acordo com a folga fiscal, tem-se um percentual dos que se aposentam, portanto, não se está inchando a folha pública de servidores de carreira. No período mais folgado, metade dos que se aposentavam era reposta. Então, não se criava aquela situação de no quarto ano após o concurso estarmos chamado os últimos colocados.

Estágio probatório deveria ser melhor usado em todos os cargos”

Valor: Houve unificação das carreiras ou espécie de otimização?

Costin: Fizemos isso nas carreiras da Advocacia-Geral da União. Quer dizer, não existia a Advocacia-Geral da União, havia procuradores, o Ministério Público ainda não havia sido criado. Então, criou-se uma carreira jurídica unificando os salários, por exemplo, dos procuradores autárquicos do INSS, que ganhavam muito mais do que os procuradores que trabalhavam na consultoria jurídica. E não havia uma unidade entre o pessoal que trabalhava nas consultorias jurídicas, nos ministérios. Então, unificamos as carreiras e organizamos os concursos. Fizemos muita coisa que combinava rigidez e flexibilidade. Demos uma limpa na folha em, por exemplo, muitos funcionários fantasmas ou servidores que estariam com 108 anos e ainda estavam na folha recebendo como ativos. Houve muita irregularidade também no processo de transformação dos ex-territórios [onde hoje estão Roraima, Rondônia e Amapá]. Tivemos até casos de mortos que passaram a aparecer como servidores da União, como se fossem ativos. Tivemos pessoas que apareceram como funcionários de cargos que exigem curso superior, quando não tinham feito curso universitário. Foi necessária uma grande depuração na folha de pagamento. À época, fui ameaçada de morte, a minha filha foi ameaçada de morte.

E outra coisa que o Bresser introduziu foi diminuir o número de carreiras, da mesma maneira que os gestores podiam ter desempenho em qualquer ministério. Temos um problema antigo em Brasília de burocracias competindo entre si. Eu me lembro, por exemplo, quando foi criado o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal [gerido pelo Tesouro] e a Secretaria de Planejamento [responsável por coordenar o Sistema de Planejamento e de Orçamento Federal]. E criaram um sistema integrado de administração financeira, que foi um caso único no mundo naquela época. Aí o Planejamento, que cuida do Orçamento, resolveu criar um outro sistema que era para fazer a mesma coisa. E os dois não conversavam entre si. Na questão das carreiras, também deveria haver uma unificação. Tentamos unificar algumas, essa de gestores, mas agora vemos que voltaram a se fragmentar. Tem-se a carreira de cada ministério, mas não deveria ser assim. Esse gestor deveria ter uma formação mais generalista.

Nós adotamos uma estratégia de, por exemplo, não mandar menos de dez [aprovados em concurso] para cada ministério. Imagina uma pessoa, formada para ter uma análise muito mais sofisticada, que vai sozinha para um ministério. Ela será engolida pela cultura instalada naquele ministério.

E também colocamos em extinção muitos cargos operacionais, como porteiro, garçom, ascensorista. Pois isso dá para terceirizar.

Valor: Como enxerga os desafios de hoje?

Costin: Acho que vivemos um outro momento. Primeiro, os salários no governo federal. Não vou discutir os salários do Judiciário, pois isso já foi debatido um monte. Não tínhamos poder sobre o Judiciário, mas os salários do Executivo hoje estão bem mais atrativos, tudo está bem mais profissionalizado. Ter funcionários de carreira razoavelmente bem remunerados permite uma continuidade de políticas que têm de ser de Estado, e não de governo. Devo confessar que, durante o período dos cinco ministros de Educação que o Bolsonaro teve, consegui ajudar um pouco os Estados na coordenação da resposta educacional à covid-19, porque eu conhecia a maior parte dos gestores de políticas públicas. Eu tinha entrada na máquina. E não é que tudo foi resolvido, porque esse é um processo. Profissionalizar a máquina pública é um processo, não é uma coisa que se resolve em um ou dois governos. E eu fiquei um pouco preocupada quando descontinuou essa política dos concursos anuais.

Valor: Por quê?

Costin: Porque a resposta à crise fiscal é uma medida que é ajustada à necessidade da crise fiscal. Então, continua-se fazendo concurso anual, mas se organiza isso de um outro jeito. Essa ideia de concursos anuais teve como inspiração o Japão e o próprio Itamaraty. Quase todo ano tem concurso para diplomatas. E eles estão sempre chamando os melhores. Com concurso anual, chama-se para o número de vagas necessárias, o que melhora a eficiência da gestão.

O governo estadual de São Paulo tentou criar uma carreira de gestores. Mas fizeram com uma remuneração baixíssima, em um Estado em que a iniciativa privada paga bons salários. Se você quer conquistar os melhores talentos, porque trabalhar na máquina pública deveria ser pouca gente e muito qualificada, é preciso se ter uma estratégia.

Valor: Na sua opinião, então, esses salários teriam de competir com o setor privado?

Costin: Sim. É com o governo federal que se está lidando. Não com prestação de serviços, mas com políticas nacionais que demandam uma capacidade de reflexão e de análise mais sofisticada.

Valor: Como vê a equipe encarregada disso?

Costin: Tenho uma impressão muito positiva da ministra de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck. Cheguei a mandar um recado para ela, que, se quiser conversar, estou à disposição. Mas ela não chamou. Mas nem por isso deixei de ter uma boa impressão dela. Por exemplo, essa organização dos concursos, o “Enem dos concursos”, é uma boa ideia porque organiza. Mas eu voltaria à lógica de concursos anuais.

Nas carreiras típicas de Estado deve haver proteções adicionais”

Valor: O governo busca uma estabilidade mais restrita desses servidores. Então, somente depois do término do vínculo, de permanecer um ano, eles seriam avaliados.

Costin: O estágio probatório, como se tem em universidades públicas, deveria ser melhor usado em todos os cargos. Seja para ser um período de aprendizagem em serviço, o que se usa muito pouco, seja para avaliação. Hoje existe avaliação de desempenho, no estágio probatório. Mas, em muitos casos é pro forma. Se fala muito do princípio da impessoalidade. Mas aí o gestor daquele indivíduo terá de julgar o seu desempenho. Ele ganha um adicional para ser gestor de pessoas. Então, ele tem de, ao mesmo tempo, se dedicar a formar melhor esse profissional e avaliar se está dando certo. Afinal, é o dinheiro público que está sendo investido naquele indivíduo. E também tem de evitar perseguições políticas. O cuidado e a impessoalidade são importantes para evitar perseguições políticas.

Valor: Então, na sua avaliação, deveria haver o melhor uso disso em todas as carreiras.

Costin: Sim. Mesmo que isso, em alguns casos, signifique uma parcela importante dos que entraram serem descartados depois de três ou cinco anos, por exemplo.

Valor: Se houver tais mudanças, na prática, isso aproximaria o serviço público do setor privado de alguma maneira, não?

Costin: Com certeza, mas tem que ter um cuidado adicional. Essa questão da impessoalidade é muito importante no setor público. Porque o clientelismo, o fisiologismo, especialmente nos Estados, acontece com frequência. E nos municípios pequenos, com mais frequência ainda. Então, tem que haver uma certa proteção, e justamente por isso que acredito que nas carreiras típicas de Estado deve haver proteções adicionais para serem evitadas demissões simplesmente políticas.

Nesse sentido, uma outra coisa que acho que o governo Lula avançou foi diminuir o percentual de servidores de cargo comissionado. Os DAS [cargos de direção e assessoramento superior, que são comissionados na administração pública federal] deveriam ser uma parcela pequena. Por exemplo, uma pessoa que analisará os seus processos ou um assessor pessoal de muita confiança ou um grande especialista em um tema que pode ser importante se ter como assessor ou secretário-executivo.

Valor: Como avalia as mudanças que vêm sendo feitas no serviço público nos EUA?

Costin: Antes de Donald Trump já havia muita flexibilidade no serviço federal. Mas ele mandou uma carta para cada um e disse que quem não estiver de acordo [com suas políticas] não pode seguir trabalhando. Imagine uma coisa dessas no Brasil. A reforma do Estado não pode ser alinhada com a visão política desse ou daquele governante. Tem de ser alinhada com o que o país precisa em termos de políticas de Estado. Especialmente quando falamos de governo federal. Porque tem de lidar com Estados que têm orientações políticas as mais diversas, no nosso caso. E nos EUA é a mesma coisa.

Valor: Críticos da PEC 32, que trata da reforma administrativa, mas não é foco do governo, argumentam que ela já nasceu obsoleta e tem objetivo estritamente fiscal.

Costin: Não deveria ser uma questão fiscal, deveria ser uma questão de profissionalização. Porque corre-se um risco muito grande de cortar algo que é decisivo para coordenar políticas nacionais. Recentemente, a Maria Hermínia Tavares escreveu um artigo sobre uma espécie de SUS da segurança pública.

E eu defendo algo que está na Constituição, mas ainda não é lei, que é o Sistema Nacional de Educação, que pode ter instâncias tripartites de negociação para garantir o acesso. Como asseguro educação de qualidade para todos? Você não consegue isso simplesmente dando liberdade total para os Estados e municípios, tampouco criando uma máquina que o governo federal opera. Sou contra a visão do [ex-ministro] Cristovam Buarque de federalização da educação nacional, porque corremos um risco de ter uma visão muito rígida, quando somos um país com grandes diversidades regionais.

Então, deveria haver na segurança e na educação instâncias de negociação tripartites, como há na saúde. Para isso, eu não posso ter um raciocínio restrito à questão fiscal. A busca pela eficiência, sim. Ou seja, gastar um pouco menos para garantir um serviço melhor. Eficiência combina custo com o resultado da ação pública. Temos de ter também eficácia e efetividade.

Valor: Mas pensando em profissionalização e salários competitivos, não corremos o risco de irmos contra a ideia de eficiência fiscal?

Costin: Depende de como fazemos isso. Por exemplo, precisamos ter menos gente com salário melhor. Há muitas áreas com gente demais em atividades de logística, por exemplo. Lembro quando um ministro da Fazenda, por exemplo, tinha oito secretárias. Fazia sentido, porque os contratos eram de seis horas, a equipe do gabinete do ministro saía mais tarde, nada era informatizado. Hoje em dia, muitos executivos compartilham secretários, até em grandes e médias empresas. Temos de prestar atenção nisso. Será que existem ineficiências? Será que estamos abrindo concurso para coisas que não precisariam de tantos profissionais? Isso deveria ser uma preocupação constante. Atrair talento implica salários competitivos, o que não temos em todas as áreas.

Valor: Qual modelo poderia ser inspiração para o Brasil?

Costin: Acho que temos de olhar menos para o modelo americano, que é muito diferente do nosso, com exceção de compras governamentais unificadas. Para começar, eles podem demitir como qualquer empresa privada. Mas a França, por exemplo, tem um setor público que se compara ao nosso. O Japão também. Embora sejam países menores e não sejam repúblicas federativas, acho que dá para olhar para eles.

Fonte: Valor Econômico