Gasto de Estados e municípios aumenta mais que o federal

Enviado Sexta, 08 de Novembro de 2024.

Despesa de governos regionais acelerou entre abril e junho e cresceu em termos nominais o mesmo que o PIB no período

O gasto primário dos entes subnacionais tem crescido em velocidade maior que a dos gastos federais desde a pandemia. Essa diferença foi especialmente intensa entre abril e junho, quando o gasto de Estados e prefeituras aumentou em aproximadamente R$ 42 bilhões na comparação com os três meses anteriores, número que é exatamente todo o incremento do PIB nacional, na série com ajuste sazonal.

Os dados são do economista da LCA Consultores e do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre FGV), Bráulio Borges, para quem este é um alerta em relação ao projeto de renegociação da dívida dos Estados, em discussão na Câmara. Caso aprovada, a medida liberaria teoricamente até R$ 62 bilhões, valor que governadores precisam separar atualmente para pagar o serviço da dívida. Com as condições favoráveis propostas no texto que já foi aprovado no Senado, a medida poderia ampliar ainda mais o crescimento da despesa em uma esfera que costuma passar ao largo das cobranças sobre contenção de gastos públicos.

Em números, a despesa dos municípios cresceu de R$ 291 bilhões no primeiro trimestre para R$ 321 bilhões no segundo, alta de R$ 26 bilhões na série dessazonalizada. Já Estados e Distrito Federal elevaram despesas em R$ 16 bilhões, de R$ 285 bilhões para R$ 301 bilhões. O gasto do governo central, por sua vez, caiu R$ 11 bilhões do primeiro para o segundo trimestre, de R$ 565 bilhões para R$ 554 bilhões.

O gasto dos governos não aparece nas contas nacionais apenas na rubrica “consumo do governo”, que reflete basicamente despesas de custeio, mas também impacta a formação bruta de capital fixo e o consumo das famílias, através de transferências como o Bolsa Família.

“No segundo trimestre, o que mais surpreendeu na abertura do PIB foi o consumo do governo geral, principalmente, dos entes subnacionais. Desta vez houve um descolamento forte, em nível não visto pelo menos desde meados de 2022”, diz Borges.

Situação é um alerta para processo de renegociação das dívidas dos Estados

Historicamente, o governo central e os entes subnacionais são responsáveis, cada um, por aproximadamente metade da despesa do governo geral. Sem autorização para se endividar, a única forma que prefeitos e governadores têm de pisar no acelerador dos gastos é com mais dinheiro em caixa, diz o economista. Desde 2020 o que se viu foi a criação de uma folga de caixa proporcionada por alguns fatores, segundo Borges.

Em primeiro lugar, a própria surpresa de crescimento da economia na saída da pandemia, que levou a uma situação curiosa: a arrecadação com tributos estaduais e municipais não sofreu o baque que se imaginava, o que fez com que o repasse de R$ 78,3 bilhões da União a Estados e municípios aprovado em meados de 2020 virasse um “bônus” que engordou o caixa nessas esferas.

Segundo dados do Observatório de Política Fiscal do Ibre FGV, a coleta de tributos municipais como proporção do PIB recuou de 2,16% em 2019 para 2,09% em 2020, número ainda longe de anos de crise anteriores, como 2016 (1,98%). Na mesma comparação, os tributos estaduais baixaram de 8,46% para 8,39%, número acima dos 8,36% de 2018.

“No auge da quarentena, imaginava-se que o PIB iria contrair até 7%, mas a queda no fim foi de 3,3%. Então houve na prática excesso de compensação. O governo federal turbinou mais do que seria adequado os caixas dos governos regionais e com isso eles conseguiram elevar as despesas sem precisar se endividar”, diz Borges. “Tudo bem que, em 2022, houve certa retomada disso com as desonerações do governo Bolsonaro antes da eleição, mas os Estados compensaram isso elevando a alíquota do ICMS.”

Também ajudou a melhorar a situação financeira de Estados e municípios o fato de que, como contrapartida ao socorro da União, eles ficaram proibidos de conceder reajuste salarial a servidores em 2020 e 2020, o que significou um ajuste pelo lado da despesa no período.

Finalmente, a própria aceleração da inflação em 2021 e 2022 elevou a arrecadação com tributos em todas as esferas, mas não afetou imediatamente e na mesma proporção as despesas, o que também ajudou a criar folga. Cálculos feitos por Borges replicando trabalho de um economista do Fundo Monetário Internacional (FMI) sugerem que as surpresas positivas do deflator do PIB brasileiro nesses dois anos ajudaram a relação dívida/PIB cair cerca de 10,8 pontos percentuais no período.

A esses três pontos soma-se ainda o crescimento do uso das chamadas emendas Pix, atualmente alvo de impasse entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com um levantamento da Transparência Brasil, foram apresentadas 941 emendas Pix na Lei Orçamentária Anual de 2024, totalizando R$ 8,2 bilhões. alta em relação aos R$ 7,3 bilhões disponibilizados em 2023. “Contabilmente, as emendas Pix são classificadas como despesa da União. De qualquer forma, transferem recursos diretamente para o caixa de Estados e municípios”, diz.

Dados do Banco Central sobre a disponibilidade de caixa dos governos regionais - que contabiliza a arrecadação a recolher, depósitos à vista, aplicações financeiras e outros créditos financeiros - mostram que o acumulado em 12 meses como proporção do PIB saiu de 0,66% em abril de 2020 para 2,48% em maio de 2022. Em agosto, o dado mais recente, este indicador estava em 2,33% do PIB.

Nesse contexto, o economista da LCA e do Ibre alerta que o projeto de renegociação da dívida dos Estados abriria uma folga ainda maior para o crescimento das despesas, ao menos na esfera estadual. Isso porque, pela proposta apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Estados podem trocam o indexador para a dívida de IPCA mais 4% para apenas o IPCA, ou seja, não há cobrança de juro real.

“Na prática, é um subsídio de pai para filho o que se propõe. Isso beneficiaria até os Estados mais ricos, que também são os mais endividados. Somente São Paulo ganharia uma folga de quase R$ 10 bilhões em serviço da dívida para gastar a mais com essa mudança”, diz Borges.

Segundo cálculos de Manoel Pires, colega de Ibre de Borges,, a proposta de Pacheco liberaria, em tese, entre R$ 48 bilhões e R$ 62 bilhões para Estados gastar imediatamente após aprovação da medida. São recursos que o governo federal - vale lembrar, capta no mercado pagando atualmente IPCA mais algo perto de 7% - deixaria de receber. “Na prática, esse valor é menor porque muitos Estados conseguem atualmente, na Justiça, autorização para não pagar à União”, pondera o economista.

Em sua avaliação, uma nova rodada de renegociação da dívida dos Estados deveria ser negociada em outras bases, com subsídios menores e também contrapartidas mais duras. O projeto também poderia impor limites de crescimento das despesas, como ocorre com o novo arcabouço fiscal. Além disso, diz, a União poderia exigir avaliações de custo-efetividade sobre as políticas estaduais, a exemplo do que já tenta implantar na esfera federal.

“É de interesse da União voltar à mesa, já que muitos Estados simplesmente deixaram de pagar, amparados por decisões que conseguem na Justiça. Mas é preciso também uma reformulação quase completa do projeto, as contrapartidas estão muito frouxas”, diz Borges. “Além disso, beneficia a todos igualmente, o que esbarra no risco moral de se colocar no mesmo saco estados que sempre pagaram as contas em dia, como os do Nordeste, e aqueles que devem muito mais e não pagam, como é o caso de Minas Gerais.”

Fonte: Jornal Valor Econômico