União pode gastar até R$ 62 bilhões com socorro aos Estados

Enviado Terça, 17 de Setembro de 2024.

Projeto do Senado não é necessariamente benéfico a todos os entes, alerta Manoel Pires

Novo capítulo na série de renegociação de dívidas estaduais com a União, o recente projeto aprovado pelo Senado estabelece novo programa de refinanciamento que cria um subsídio anual em encargos de cerca de R$ 48 bilhões a ser suportado pelo governo federal. Considerando o período de transição estabelecido para Estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal (RRF) - Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e também Minas Gerais, cuja adesão ainda está pendente -, a conta para o governo federal pode chegar a R$ 61,9 bilhões no primeiro ano. Mesmo assim, um dos desafios é garantir que todos os Estados entrem no programa de refinanciamento.

Os cálculos do economista Manoel Pires, pesquisador e coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), pressupõem a adesão de todos os Estados aos termos do Projeto de Lei Complementar (PLP) 121/2024, aprovado pelo Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados.

A estimativa considera o que os Estados deveriam pagar com os encargos vigentes hoje e também que todos os entes estejam na condição do PLP que permita o pagamento de IPCA mais zero como encargo da dívida à União. Pelas regras vigentes, os Estados pagam encargos com base em IPCA mais 4% ou Selic, o que for mais vantajoso.

 “O governo federal hoje se endivida aproximadamente com IPCA mais 6%. Então, os Estados que estão pagando IPCA mais 4% estão recebendo um subsídio de dois pontos percentuais. Num país federativo, é natural que haja algum tipo de subsídio entre União e Estados”, diz Pires. A questão, destaca, é o tamanho do subsídio. “Sair do IPCA mais 4% para o IPCA mais zero cria um subsídio de R$ 48 bilhões anuais. O espaço fiscal aberto para o governo subnacional é ainda maior se considerarmos os Estados que estão em dificuldade, no regime de recuperação fiscal”, diz Pires.

O PLP aprovado pelo Senado, explica Pires, parece ter tentado reproduzir o conceito da Lei 9.496, que criou, em 1997, o atual marco das dívidas estaduais. Naquele ano, a União assumiu R$ 95,3 bilhões em dívidas dos Estados, o que equivalia a 9,6% do PIB. A lei de 1997, aponta, foi longeva. Desde 2014, porém, as rodadas de refinanciamento das dívidas estaduais com a União se intensificaram com várias leis complementares (LCs), como a LC 148, em 2014, a LC 156, em 2016 e a 178, em 2021. Ele inclui no histórico a LC 159, de 2017, do RRF.

Com reestruturação das dívidas estaduais em 30 anos, em 360 parcelas mensais, o PLP 121/24 criou três situações que o Estado pode escolher, cada uma delas com um critério de encargo: IPCA mais 0%, IPCA mais 1% e IPCA mais 2%.

“É bom ressaltar que pagar IPCA mais 0% significa reduzir em quatro pontos percentuais o que os Estados hoje deveriam estar pagando”, dis. Os governos estaduais podem conseguir isso a partir de três hipóteses. Na primeira, o Estado, explica, pode antecipar 20% da dívida, destinar 1% da dívida para um fundo (Fundo de Equalização Federativa) e outro 1% da dívida para investimentos específicos feitos pelo próprio governo estadual.

“Uma segunda hipótese é o Estado antecipar apenas 10% das dívidas em vez de 20%. Em contraposição, a fatia para o Fundo de Equalização sobe de 1% para 1,5%, mantendo 1% para investimentos específicos. Ele troca 10% de antecipação de dívida por mais 0,5 ponto percentual de aporte nesse fundo a cada ano.”

Na terceira situação que permite o IPCA mais zero, prossegue Pires, o Estado faz a amortização inicial da dívida. Mas nesse caso o governo deve aplicar 2% da dívida ao fundo de equalização, mais 2% em investimentos. Essa opção, dentro de todos os cenários possíveis no PL 121/24, diz Pires, deve ser a “estratégia dominante”.

“A relação de custo e benefício é mais favorável para os Estados nessa opção. A dívida vai ficar a mais barata possível e ao mesmo tempo é a hipótese que exige menos recurso financeiro a curto prazo. É muito melhor para o Estado aplicar 2% em investimento específico, que é um dinheiro dele mesmo, do qual vai se beneficiar politicamente, do que antecipar 20% das dívidas para a União, algo do qual não se beneficiará. E 20% é muito mais caro do que 2%”, compara.

“A proposta dá uma volta enorme para criar cenário no qual os Estados terão suas dívidas com encargos em IPCA mais zero. Na prática a proposta está tirando os Estados de IPCA mais 4% para IPCA mais zero.”

O rol de investimentos específicos que os Estados precisarão fazer, diz Pires, é bastante amplo. É preciso gastar, explica, integralmente em educação profissional técnica de nível médio, infraestrutura de universalização de ensino infantil, educação em tempo integral, infraestrutura de saneamento, habitação e transportes, segurança pública e adaptação às mudanças climáticas. “É muito fácil cumprir essa exigência de gastos com investimento específico.”

Outra polêmica do PLP são os ativos que podem ser usados para amortizar a dívida. “Há a situação tradicional, que é a transferência de recurso financeiro. Mas há itens mais polêmicos, com ativos que não são líquidos e cujo valor justo não é simples de ser avaliado. Nas participações societárias, fala-se muito na Cemig, por exemplo. O governo de Minas Gerais faria uma cessão da participação societária, ou de uma parcela dessa participação, para a União. Será que a União tem interesse em ser administradora ou gestora da Cemig? Também há possibilidade de cessão de crédito inscrito na dívida ativa. Há dificuldade enorme para definir o valor justo disso. Em geral, esses créditos estão longe de serem líquidos e são altamente judicializáveis.”

Para Pires, a proposta criou uma sistemática ampla para possibilitar a amortização, mas o único direito líquido e certo é a transferência de recursos financeiros. “Os outros itens são muito difíceis de ser viabilizados.”

O PLP prevê também uma regra de transição para quem está no Regime de Recuperação Fiscal. “No primeiro ano, esses Estados do RRF não pagam IPCA, por exemplo. Eles pagarão 20% da parcela devida. No segundo ano, 40%, e assim por diante, até os 100% no quinto ano. Isso foi feito porque atualmente os Estados do regime de recuperação pagam muito pouco. Alguns não estão pagando nada. É o caso de Minas Gerais, que entrou com pedido para entrar no regime, mas não apresentou proposta. O Estado não paga a dívida com base em liminar do Supremo Tribunal Federal [STF].”

“A escadinha de pagamento foi criada para incentivar esses Estados a entrarem na novo acordo. Contudo, essa escadinha aumenta ainda mais o subsídio”, diz Pires. A questão, diz ele, é que, para os Estados do RRF, mesmo com essa gradação, a adesão ao PL 121/24 pode não valer a pena, se compararmos o que eles pagam atualmente com o que eles pagariam em IPCA mais zero e com os 2% de transferência de para o fundo de equalização.

Isso acontece porque os Estados do RRF não estão pagando a dívida de acordo com o coeficiente de atualização monetária da regra geral. “Eles estão naquela regra de pagamento gradual em dez anos, para normalizar a situação.”

Goiás, exemplifica, Pires, paga hoje R$ 102,7 milhões. Se entrasse no IPCA mais zero do acordo proposto, pagaria R$ 717,4 milhões. Com a regra da escadinha, porém, pode pagar R$ 143,5 milhões no primeiro ano, mas também aportaria R$ 337,8 milhões anuais no fundo de equalização.

“Então não é óbvio que para os Estados do RRF vale a pena entrar nesse acordo. Isso possivelmente deve ser debatido na Câmara. A proposta parece ser dúbia sobre o real incentivo para a adesão desses Estados do RRF.” Pires calcula que sem adesão dos Estados do RRF, o novo subsídio do governo federal nos encargos cairia para R$ 21,8 bilhões anuais. “Mas se os Estados do RRF não aderirem, para que serve a proposta? Será um baita benefício fiscal aos que já estão pagando. Quem tem capacidade de pagar as dívidas não precisa passar por nenhuma reestruturação.”

O PLP 121/24 também trouxe condicionantes para o crescimento da despesa dos Estados que entrarem no acordo. A despesa cresce limitada ao IPCA caso não tenha havido crescimento da receita primária no ano anterior. Caso essa receita tenha crescido mas com resultado primário negativo ou nulo, a despesa poderá subir IPCA mais 50% do crescimento real da receita primária. Se a receita crescer e houver superávit primário, a despesa pode crescer IPCA mais 70% da variação real da receita.

Existem exclusões à regra. Saúde e educação, por exemplo, não entram na conta desse limite. Despesas financiadas com transferências obrigatórias e as obrigações criadas pela própria renegociação também estão fora da conta.

Para Pires, a proposta traz uma tentativa de fortalecer o equilíbrio fiscal dos Estados, o que pode mudar a tendência do “spend and tax”, no qual se corre atrás de receitas, com aumento de carga tributária, para cobrir o aumento de despesas. “Mas vincular gasto à arrecadação aumenta a volatilidade do gasto público. Em tese, desvincular gasto de receita gera mais estabilidade da despesa.”

Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, considera que o impacto dessa vinculação pode não ser tão negativo. “Porque não é a vinculação às receitas de despesas de contas específicas, como da saúde e da educação. Quando é para o agregado [das despesas], é possível segurar salário”, exemplifica. ”Há margens de manobra.”

Ponto importante e inovador, diz Pires, é o efeito redistributivo da nova renegociação, que beneficiaria os Estados muito pouco endividados e com participação alta no Fundo de Participação dos Estados (FPE). A distribuição dos recursos, diz Pires, será por critério misto, sendo 80% pelos percentuais do (FPE) e 20% pelo inverso da relação entre a dívida consolidada e a receita corrente líquida. O maior aporte ao fundo seria do Estado de São Paulo, com contribuição líquida de R$ 5,37 bilhões anuais, calcula Pires, ainda considerando a adesão de todos os governos estaduais. “Se os Estados do RRF não entrarem no acordo, o que acontecerá, no final das contas, é uma grande redistribuição de São Paulo, com recursos da União, para os demais Estados”, avalia Pires.

“Diferentemente dos projetos anteriores, nesse há uma reorganização do fluxo financeiro na relação entre União e Estados. Há um grande esquema de redistribuição da União para os Estados mais pobres e com menos endividamento”, avalia Pires.

Um ponto “frágil” da proposta, diz Pires, é que a fiscalização do acordo fica a cargo do Tribunal de Contas dos Estados. “O histórico que temos com isso não é bom.” O texto do PLP, aponta, permite entender que o Ministério da Fazenda vai receber os relatórios para dar publicidade. “Mas tem muito pouco poder de fazer algum tipo de gestão, caso haja algum descumprimento.”

Com a redução dos encargos da dívida, destaca Samuel Pessôa, pesquisador do FGV Ibre, a conta fica toda com a União. “Para quem não está pagando a dívida, é melhor continuar não pagando do que entrar nessa negociação.” O efetivo interesse de todos os governos estaduais para a adesão ao acordo, avalia, depende do STF.

Para Pires, a entrada do STF nos últimos anos na discussão sobre dívidas entre Estados e União “fragilizou muito” a posição do governo federal para negociação. Qualquer acordo novo, defende, tem que pressupor algum tipo de validação do STF. “Sem isso, ficará muito difícil ter uma relação federativa mais longeva. É preciso que o STF acompanhe isso e, de certa forma, participe de alguma forma do acordo. O caso de Minas Gerais é muito emblemático. O STF deu a liminar pra Minas no começo de agosto. Dez dias depois Minas Gerais estava renovando vários benefícios fiscais. É óbvio que uma solução racional pra isso é eventualmente dar a liminar, mas com algum tipo de amarra para não incorrer nesse tipo de situação.”

Bráulio Borges, economista da LCA Consultores e pesquisador do FGV Ibre, chama a atenção para o contexto de fragilidade da responsabilidade fiscal tanto no âmbito da União quanto no dos governos regionais. Reflexo disso, diz ele, é o projeto de lei em tramitação no Senado que flexibiliza a contabilização da despesas de pessoal. “Foi aprovado pela Câmara dos Deputados e ainda precisa ser discutido no Senado. Mas é uma tentativa de flexibilizar de novo a Lei de Responsabilidade Fiscal para permitir mais gastos nos governos regionais.”

Fonte: Jornal Valor Econômico