A volta de 360º do ICMS entre filiais: do roto ao rasgado
Enviado Quarta, 06 de Dezembro de 2023.Após tantas discussões, tudo parece voltar ao mesmo lugar. E um pouco pior.
Este ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na ação direta de constitucionalidade (ADC) nº 49 que não incide o ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos filiais. A bem da verdade, o STF reiterou posição já consolidada na Súmula nº 166 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 1996 e no Tema 1.099 de repercussão geral.
Nestas decisões, considerou inconstitucional parte da Lei Complementar nº 87/96, ao argumento de que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos filiais equivale a transferir a mercadoria de uma prateleira para outra do mesmo proprietário, não havendo transferência de titularidade do bem. Logo, inexistente o fato gerador do ICMS.
Na mesma oportunidade, o STF modulou os efeitos para que passasse a vigorar a partir de 1 de janeiro de 2024, com ressalva dos processos judiciais e administrativos em andamento. Deixou claro, ainda, que exaurido este prazo sem que os Estados disciplinassem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, ficaria reconhecido o direito de os sujeitos passivos procederem a transferência livremente, mesmo que entre Estados distintos.
O Convênio Confaz nº 174/2023 disciplinou, a pretexto de regular o decidido na ADC 49, que: (a) a transferência de créditos é obrigatória e se dará mediante lançamento a débito pelo remetente e a crédito pelo destinatário; (b) a proporção do crédito transferido seguirá as alíquotas interestaduais atualmente existentes; (c) eventual acúmulo de créditos por parte do remetente se submete às regras gerais de seu Estado; (d) o valor transferido deve ser destacado em nota fiscal normalmente; (e) a base de cálculo segue sendo o custo, com as mesmas reduções previstas para operações entre empresas diferentes, inclusive nos casos de isenção ou imunidade; (f) a transferência do valor do crédito garante ao remetente a manutenção do valor correspondente a operações antecedentes; e (g) a transferência do crédito garante a manutenção dos benefícios concedidos pelo Estado de origem, ressalvado que as hipóteses de estorno de crédito deverão ser registradas como débito.
O Estado do Rio de Janeiro, por meio do Decreto nº 48.799/2023, deixou de ratificar este convênio sob a alegação de que o STF decidiu que a transferência e o creditamento deste imposto seria uma faculdade do contribuinte.
No dia 1º de dezembro deste ano, novo convênio foi editado, sob o nº 178/2023. A redação é idêntica ao Convênio 174/2023, exceto em parte do artigo 8º que define que entrará em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial e não mais na sua ratificação nacional no Diário Oficial como constava no Convênio substituído.
Seria cômico se não fosse trágico.
É fato que o desafio à livre transferência de créditos está justamente no rompimento da repartição do imposto entre os Estados de origem e de destino, desequilibrando a partilha efetiva pretendida pela lei. Mas o STF deixou claro que isto é um problema a ser resolvido entre os Estados e o Distrito Federal, compensando entre eles situações que acabem por resultar no represamento de créditos no Estado de origem e de débitos no destino.
A imposição de transferência obrigatória do crédito do estabelecimento remetente ao estabelecimento filial destinatário viola claramente a decisão do STF, especialmente quando afirmou que transferência do crédito seria uma faculdade do contribuinte, cabendo aos Estados ajustarem as compensações entre si.
Ao disciplinar a transferência obrigatória, o convênio causa perplexidade ao fazer com que a situação, na prática, retornasse ao status anterior à decisão do STF.
Afora a aparente afronta à decisão do STF, o convênio deixou mais dúvidas do que apresentou soluções.
Há a determinação para que a transferência respeite a mesma proporcionalidade das alíquotas interestaduais, o que gera dúvidas no critério sob a perspectiva de que estamos diante de uma não operação do ICMS, mas apenas de transferência dos créditos.
Não há claro tratamento dos créditos acumulados à luz da legislação vigente que os caracteriza.
Diante de eventuais equívocos, haverá dúvidas sobre as multas incidentes, especialmente diante da norma que prevê tipo infracional pertinente a operações para situações de não operação submetida ao ICMS.
Não há previsão legal específica de penalidade para o contribuinte que não transferir o crédito. Tampouco ao que transferir ou receber além do autorizado. Analisando as normas de substituição tributária, não se identifica uma conduta específica para enquadramento deste comportamento.
O realinhamento dos benefícios fiscais, especialmente os que conferem crédito presumido de ICMS calculado sobre as operações de saídas interestaduais não podem ser aplicados automaticamente diante de uma não operação. A mudança da sua sistemática precisaria de nova norma, podendo ser caracterizado como um novo benefício vedado pela Lei Complementar 160/2017.
Para finalizar, não consta no próprio rodapé do Convênio nº 178/2023 que o Estado do Amazonas tenha subscrito o texto, reabrindo a discussão acerca da necessidade de unanimidade para sua edição.
O Convênio nº 178/2023 é mais um ato estatal que contribuirá para a estatística de que o poder público é o maior litigante do país, fomentador de litígios por meio da edição de normas confusas, incompletas e ilegais. São os mesmos que não hesitam em apontar para o contribuinte com adjetivações demeritórias, imputando-lhes responsabilidade pelo caos da litigiosidade, pela queda da arrecadação e má composição das contas públicas.
Enfim, há muito mais dúvidas do que respostas, mas fica clara a convicção de que o ICMS já padeceu, estando com os dias contados pela vindoura reforma tributária.
Fonte: Jornal Valor Econômico - Por Eduardo Salusse