Cidades que mais arrecadam com petróleo buscam evitar os erros do passado no Rio
Enviado Sexta, 15 de Setembro de 2023.Com bilhões recebidos, Maricá e Niterói apostam em fundos, política social e investimentos; objetivo é não repetir ‘desperdício’ do Norte fluminense
Atuais campeãs no recebimento de royalties e participações especiais pela produção de petróleo, Maricá e Niterói, na região metropolitana do Rio, olham para o norte do Estado para aprender com os erros do passado recente. Nas duas cidades, a leitura é de que a abundância de recursos precisa ser usada de forma diferente daquela dos municípios do Norte fluminense, que encabeçavam a lista dos maiores beneficiários no começo do século. A ideia passa por investir, a um só tempo, em políticas sociais, na diversificação da atividade econômica e na criação de “poupanças” para fazer as receitas de hoje renderem no futuro.
A história do uso dos royalties no Estado é marcada pelo que estudos consideram um desperdício. O mau uso dos recursos ocorreu em projetos de pouco impacto pelos municípios ou, no caso estadual, para adiantar pagamentos previdenciários, algo que virou recorrente em um Rio endividado e marcado por décadas de baixo crescimento e perdas de participação no PIB. Agora, o desafio de quem conta com os cofres engordados pelo dinheiro do petróleo passa por não repetir esse histórico, avaliam especialistas e gestores públicos.
Os municípios do Norte fluminense ficaram marcados por não aproveitar a abundância de recursos do petróleo da bacia de Campos, que depois entrou em declínio, para promover mudanças estruturais. Um episódio virou símbolo do que é considerado um uso nababesco do dinheiro: em 2004, a prefeitura de Rio das Ostras gastou R$ 12 milhões para reformar com porcelanato um calçadão da orla. Também foi marcante, em algumas cidades, o aumento de gastos com a máquina pública.
Nos últimos anos, para preservar o superlativo - e finito - dinheiro dos royalties que hoje irriga as cidades, sobretudo por causa do pré-sal, Niterói e Maricá criaram fundos soberanos inspirados no modelo escandinavo. Hoje, Niterói tem R$ 927,6 milhões investidos e projeta chegar a R$ 1 bilhão até o fim do ano. Maricá conta com poupança ainda maior, com R$ 1,5 bilhão. No ano passado, quando somados royalties e participações especiais, Maricá recebeu R$ 4,3 bilhões, e Niterói, R$ 2,6 bilhões.
Pagos mensalmente, os royalties consideram o valor da produção do campo incluído na área municipal. Já a participação especial, trimestral, é uma compensação financeira extraordinária com base na exploração de campos com grande volume produtivo - caso do pré-sal da bacia de Santos, que impulsionou os rendimentos volumosos para as cidades metropolitanas fluminenses e também a paulista Ilhabela, único de fora do Rio na lista dos cinco mais beneficiados em 2022.
Hoje, os campos da bacia de Santos, como o Tupi, vivem momento mais frutífero que o pós-sal da de Campos, que antes colocava o Norte fluminense e municípios do entorno no topo da arrecadação.
Cerca de R$ 20 bilhões foram repassados apenas em royalties a municípios brasileiros em 2022, com mais de 70% aos do Rio. Estados ficaram com R$ 16 bilhões, sendo R$ 12,8 bilhões para os cofres fluminenses. Do ponto de vista municipal, apesar de hoje mais de mil cidades receberem, há uma concentração entre os principais beneficiários - cerca de metade vai para os dez maiores.
“As arrecadações de royalties e participação especial tiveram forte crescimento nos últimos 15 anos, principalmente devido ao expressivo aumento da produção de petróleo e gás natural no Brasil, impulsionado pela produção do pré-sal”, explica Symone Araújo, diretora da ANP. “Passaram de um montante de R$ 14,6 bilhões em 2007 para R$ 117,9 bilhões em 2022.”
Araújo destaca que, apesar do ano pujante em 2022 e de haver projeções de como ficará o cenário nos próximos anos, trata-se de um mercado volátil, suscetível a mudanças. “A apuração dos valores de royalties e a participação especial estão sujeitas a muitas variáveis: taxas de câmbio, volumes de produção [petróleo e gás natural], preços de referência [petróleo, gás natural e derivados], alterações na legislação, investimentos das concessionárias e custos incorridos na exploração e produção”, elenca.
O prefeito de Maricá, Fabiano Horta (PT), defende a política do município de poupar pensando no futuro: “O fundo soberano para nós é uma experiência concreta depois do que vimos no Norte fluminense. Um aprendizado direto do que foi feito de errado lá”, diz. “Achamos que o fundo sustenta as políticas sociais a médio e longo prazos. Ele tem uma característica do não uso: só usamos uma vez na pandemia, com retirada de R$ 20 milhões para fazer aporte num programa para empresas locais.”
Em Niterói, onde também só houve retirada emergencial na pandemia, o prognóstico é parecido: “Os municípios do Norte receberam um ciclo do petróleo talvez sem ter a noção de que seria tão curto”, analisa o prefeito Axel Grael (PDT). “É fácil falar quando vem depois, porque observamos o erro dos outros, mas tivemos a preocupação de fazer com que a oportunidade seja duradoura.”
Na concepção de programas de renda básica e moeda social, as prefeituras das duas cidades também têm modelos parecidos e considerados de referência. Maricá inspirou a vizinha com a moeda local Mumbuca, que atende 42 mil moradores. O início remete a 2013, antes mesmo do boom dos royalties impulsionar a operação do programa. São pagos R$ 200 por mês aos beneficiários.
Niterói, por sua vez, tem a moeda Arariboia, com 37 mil famílias atendidas. Os valores do benefício variam. A lógica, nos dois casos, é garantir uma renda mínima aos mais pobres e aquecer a economia no território, dado que o dinheiro circula no comércio local e cria, portanto, beneficiários indiretos.
Nos dois municípios também há o discurso de que investimentos com o dinheiro do petróleo estão sendo feitos para dinamizar a atividade econômica e torná-la menos dependente de óleo e gás. Esse é o ponto defendido pelo economista Mauro Osorio, professor da UFRJ e conhecedor da história econômica e política do Rio.
“Fundo soberano é importante, mas mais ainda é fomentar atividades econômicas indutoras, que possam gerar novas rendas. O que esses municípios precisam é ter uma estratégia de fomento ao desenvolvimento econômico que permita gerar rendas novas para, quando a receita de royalties diminuir, manterem a mesma capacidade de gasto e elaboração de políticas públicas”, avalia.
Secretária de Planejamento de Niterói, Ellen Benedetti segue a linha de Osorio ao destacar os investimentos: “Sempre tivemos a cautela de não deixar de fazer grandes investimentos para desenvolver a economia e, inclusive, gerar impostos”. Quem também endossa o discurso é o secretário de Planejamento, Orçamento e Fazenda de Maricá, Leonardo Alves: “Nossos números de receita própria [sem royalties e PEs] saltaram desde 2017 de R$ 300 milhões para R$ 1,4 bilhão. Significa que preparamos a cidade para a receita fluir”.
Apesar de reconhecer que houve mau uso, Osorio é um defensor da manutenção dos valores recebidos pelo Rio, que representam cerca de um terço da receita total do Estado. “O Rio não tem privilégios, não é o ‘playboy’ que muitos pensam. Se por um lado temos a arrecadação dos royalties, perdemos ao longo das décadas 40% de participação no PIB. E o governo federal, aqui, arrecada muito e devolve pouco, só um quarto do que recebe; já em Minas e no Espírito Santo, devolve a metade”, afirma. “É importante deixar isso claro para não reforçar o discurso de que é preciso tirar os royalties do Rio, algo que quebraria o Estado. Os atores nacionais têm que ter essa clareza, até porque isso está em discussão no STF.”
No âmbito municipal, Osorio lembra ainda que, entre 2012 e 2020, na média, as cidades do norte do Estado tiveram queda de receita de 40,8%; em Campos dos Goytacazes, o maior deles, o baque foi de 60,1%. “Ou seja, não aproveitaram de forma adequada aquele momento e hoje têm uma situação de receita mais complicada”, aponta. “Uma exceção é Macaé, que foi base marítima e aérea do pós-sal. Se olhar o ISS de Macaé, é muito alto até hoje. O fato de ter sido a base gerou muita atividade econômica por lá, gera até hoje.” a forma como a cidade usa o dinheiro do petróleo.
No estudo “Royalties do petróleo e desenvolvimento municipal: avaliação e propostas de melhoria”, publicado em 2012 pela consultoria Macroplan, constata-se que, entre 2003 e 2010, as despesas com pessoal e outras relativas a custeio dobraram num conjunto de municípios - não só do Rio - que vivenciou o boom financeiro no início do século, enquanto os investimentos cresceram 24%.
Presidente da Organização dos Municípios Produtores de Petróleo (Ompetro), que reúne cidades ligadas à bacia de Campos, o prefeito de Campos dos Goytacazes, Wladimir Garotinho (União Brasil), relativiza o que são considerados os erros do passado e afirma que “o momento é outro”. Segundo ele, os recursos, que correspondem a 30% do total de receitas da cidade, têm sido bem aplicados. “Campos teve sua economia fortalecida pela atividade produtiva, receita própria e, principalmente, parcerias com os governos estadual e federal”, diz. Filho do ex-governador Anthony Garotinho, ele diz que a logística e a infraestrutura da cidade foram fundamentais para a instalação do Porto do Açu.
No atual ciclo, Maricá e Niterói são as maiores beneficiárias dos recursos do petróleo, apesar da judicialização de outros municípios, que tentaram nova redistribuição do dinheiro. São Gonçalo, Magé e Guapimirim conseguiram uma liminar que imporia perdas de arrecadação para as duas campeãs de receitas e para a capital, mas a decisão foi derrubada no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A bonança do petróleo também ajudou a consolidar os grupos políticos que comandam as cidades. Em Maricá, o PT comanda o Executivo desde 2009 - primeiro com Washington Quaquá, e desde 2017 com Fabiano Horta. No auge do antipetismo, em 2016, o partido perdeu nove das dez prefeituras que tinha no Estado. Manteve apenas Maricá. Já em Niterói, onde historicamente o PDT é forte, a sigla também tem mantido bons desempenhos eleitorais. Atual prefeito, o ex-velejador Axel Grael foi vice de Rodrigo Neves na gestão anterior e se elegeu com 62% dos votos no primeiro turno de 2020.
Hoje secretário-executivo da prefeitura, Neves lembra que, quando o município se deparou com a iminente abundância de recursos do petróleo, debateu-se muito como utilizá-los. Na criação do fundo soberano, houve a inspiração no modelo escandinavo, mas as condições sociais brasileiras impuseram uma lógica inversa na hora de aplicar o dinheiro, com prioridade aos investimentos.
“Lá [nos países nórdicos], poupam 90% no fundo e gastam 10%. Mas, como não estamos na Escandinávia, optei por uma decisão política: a proporção aqui é praticamente o inverso, guardamos 10% das participações especiais no fundo”, explica. “Precisamos investir em educação, saúde, infraestrutura. E não podemos criar na população a ideia de que estamos só guardando para o futuro enquanto as atuais gerações estão sofrendo.”
Nas ruas de Maricá, além do comércio que aceita a moeda social, chama atenção a presença constante dos ônibus que circulam com um aviso: “Tarifa zero”. Toda a frota opera de forma gratuita via Empresa Pública de Transporte (EPT, sigla que soa como “É PT”). O apelido dos veículos, todos da cor do partido do prefeito e do presidente Lula, é “vermelhinho”, também uma forma de associar à sigla as políticas populares.
No caso da moeda Mumbuca, assim como a Arariboia em Niterói, o mais comum é ver a população usando o benefício para comprar itens básicos.
“A Mumbuca mudou muita coisa. Somando meu benefício e do meu marido, dá R$ 400 por mês. Uso muito para farmácia e mercado. O bom é que sobra mais dinheiro para comprar outras coisas”, conta, na saída de um supermercado, a diarista aposentada Adinea Figueiredo, de 65 anos.
Horta explica que os programas sociais - especialmente a Mumbuca, os “vermelhinhos” e o chamado Passaporte Universitário - ganharam escala nos últimos anos. Ele garante, contudo, que a cidade também tem investido em áreas-chave como infraestrutura urbana, num contexto de aumento populacional. O município foi, com sobras, o que mais cresceu no Rio no último Censo do IBGE: passou de 127 mil para 197 mil pessoas em 12 anos, aumento de 55%.
“Por consequência, há mais passivo na educação, na saúde. Tem que ampliar escolas, porque há um passivo de vagas. Estamos trabalhando no aumento das redes, na consolidação da infraestrutura, no saneamento”, diz. O saneamento costuma ser apontado pelos próprios petistas da cidade como um problema ainda pendente, apesar de avanços nos últimos anos.
Nas duas cidades, o conforto nos cofres também tem permitido gastos em cultura e temas afins, como a construção do novo Mercado Municipal em Niterói ou o planejamento de uma enorme feira de livros a ser realizada nas próximas semanas em Maricá, com convidados como Gilberto Gil. Na festa literária, o município vai destinar R$ 10 milhões para alunos da rede pública comprarem livros.
Outro apoio milionário à cultura, como “soft power” da cidade, será dado à escola de samba União de Maricá, que no ano que vem estará pela primeira vez na Marquês de Sapucaí - vai desfilar na Série Ouro, a segunda divisão da festa. O subsídio de R$ 8 milhões é quatro vezes maior do que a prefeitura da capital paga a cada escola do Grupo Especial, a elite do Carnaval.
Fonte: Jornal Valor Econômico