A inconstitucionalidade do adicional de ICMS dos Fundos de Combate à Pobreza
Enviado Sexta, 16 de Dezembro de 2022.Impossibilidade de cobrança do adicional sobre operações com bens e serviços considerados essenciais e indispensáveis
Em vigor desde o dia 23 de junho, a Lei Complementar nº 194/2022 alterou a Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96) para positivar a essencialidade e a indispensabilidade dos combustíveis, do gás natural, da energia elétrica e dos serviços de comunicação e transporte coletivo para fins de instituição e cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadoria se Serviços (ICMS). Com isso, a partir do advento da nova Lei, os Estados e o Distrito Federal não poderão exigir que o imposto referente às operações com tais produtos ou serviços seja apurado mediante utilização de alíquotas em percentuais superiores ao previsto na legislação interna para o cálculo do ICMS devido nas demais operações em geral.
Embora tenha sido bem recepcionada pela maioria dos contribuintes, a inovação legislativa foi repudiada por vários Estados sob o argumento de que, a despeito dos mecanismos de compensação assegurados pela União no texto do art. 3º da Lei Complementar nº 194/2022, a repentina redução do imposto sobre tais operações e serviços causaria severos impactos no planejamento orçamentário e financeiro elaborado por cada Ente Federado em seu respectivo Plano Plurianual (PPA). Por esse motivo, a celeuma foi levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal por onze Estados e pelo Distrito Federal, os quais ajuizaram, em conjunto, Ação Direta de Inconstitucionalidade para questionar a validade da nova lei perante a Constituição Federal, já que a norma supostamente ofenderia a repartição de competências tributárias expressa na Constituição Federal, bem como feriria a autonomia financeira das unidades federadas frente à União.
A despeito dos acirrados debates acerca da validade da redução das alíquotas de ICMS referentes às operações definidas pela norma como essenciais prevista na LC 194/2022, pouco ou nada se discutiu acerca dos seus impactos no tocante à cobrança do adicional de ICMS para o financiamento dos Fundos Estaduais de Combate à Pobreza (FECOP). Ainda assim, é inegável que a cobrança do adicional de imposto estadual em relação às operações com os bens e serviços expressamente classificados como essenciais e indispensáveis não poderá substituir em relação aos fatos geradores posteriores à vigência da nova lei, uma vez que as normas estaduais que instituem a cobrança do adicional sobre tais materialidades padecem de superveniente inconstitucionalidade.
A criação do adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS para o financiamento dos Fundos Estaduais de Combate à Pobreza foi introduzida na Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional nº 33/2000, a qual inseriu os artigos 82 e 83 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Estes dispositivos, por sua vez, ampliaram a competência tributária dos Estados e ao DF outorgando-lhes a prerrogativa de instituir e cobrar adicional de ICMS em relação às operações com produtos ou serviços definidos como supérfluos por lei federal.
Embora o dispositivos constitucionais fossem claros no tocante à atribuição de Lei Federal para definir os produtos e serviços supérfluos para os quais poderia ser exigido o adicional de ICMS destinado ao financiamento do FECOP, várias Unidades Federadas instituíram a cobrança do tributo mesmo sem a existência da referida norma, sob o argumento de que (i) o art. 24, §3º da CF/88 outorga aos Estados competência legislativa plena para dispor de assuntos que deveriam ser tratados em normas gerais estabelecidas em lei federais enquanto estas não fossem editadas; bem como que (ii) o constituinte derivado teria determinado, e não simplesmente autorizado, a criação do FCP, de modo que eventual descumprimento pelos Estados acabaria resultando na ineficácia da finalidade da norma de erradicar a pobreza nas regiões brasileiras, e, mais ainda, atentaria contra os objetivos fundamentais da República previstos no art. 3º da Carta Maior.
Diante disso, vários contribuintes ingressaram com ações judiciais com o objetivo de afastar a cobrança do adicional destinado ao FECOP instituída por leis estaduais sem a observância das balizas previstas nos arts. 82 e 83 da ADCT, inclusive por meio do ajuizamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade junto ao STF. Todavia, a irresignação destes contribuintes foi frustrada com o advento da EC nº 42/2003, cujo art. 4º convalidou os adicionais de ICMS criados até então pelos Estados e pelo DF em desacordo com o regramento constitucional, o que ensejou a perda do objeto das ações constitucionais em curso no Pretório.
Com efeito, no julgamento da ADI nº 2.869-3/RJ proposta antes da vigência da nova Emenda Constitucional, o Ministro Ayres determinou a extinção do feito sem o julgamento do mérito, e, em caráter de obter dicutum,[1] afirmou o seu entendimento de que a EC nº 42/2033 convalidou a cobrança do adicional de ICMS para financiamento do FECOP conforme previsto em leis estaduais editadas sem o devido amparo de lei federal. Desde então, embora a tese da “constitucionalidade superveniente” seja questionável, este entendimento vem sendo reiteradamente aplicado por ambas as Turmas do STF em diversos julgados cujo objeto perpassa pela (in)constitucionalidade das leis estaduais que instituíram a cobrança do adicional referente ao fundo de combate à pobreza instituído pelos Estados e Distrito Federal[2].
Ainda que se admita que a Constituição Federal atribuiu aos Estados competência legislativa excepcional para dispor sobre normas gerais cuja regulação foi originalmente atribuída à União, com base no mesmo fundamento legal, isto é, no art. 24, §4º da Carta Maior, tem-se que a superveniência da Lei Complementar nº 194/2022 derrogou as normas estaduais que previam a cobrança do referido tributo nas operações com bens e serviços classificados pela lei federal como essenciais e indispensáveis. Por esse motivo, não obstante o caráter extrafiscal da exação, não se pode admitir a continuidade da cobrança do adicional de ICMS após a vigência da nova Lei nas operações com combustíveis, gás natural, energia elétrica e serviços de comunicação e transporte coletivo, conforme sinalizado por alguns Estados como Alagoas[3] e Ceará[4].
Ora, mesmo após a EC nº 42/2003, o art. 82, §1º da ADCT restringe a competência tributária outorgada aos Estados e ao Distrito Federal para instituir e cobrar o adicional de ICMS às operações com produtos e serviços considerados como supérfluos nas condições estabelecidas em Lei Complementar editada nos termos do art. 155, §2º, XII do texto constitucional, papel este que atualmente é desempenhado pela Lei Kandir (LC nº 87/1996). Sendo assim, ao positivar a essencialidade dos combustíveis, do gás natural, da energia elétrica, das comunicações e do transporte coletivo, a LC nº 194/2022 limitou o poder de tributar das Unidades Federadas no tocante ao adicional destinado ao FECOP.
Portanto, a nova lei complementar não só suspendeu a eficácia das leis estaduais e distritais editadas até a data da sua vigência com o intuito de suprir a mora legislativa da União no que diz respeito à instituição de normas gerias que definissem os produtos e serviços considerados supérfluos para fins de instituição e cobrança do ICMS, como também acarretou a inconstitucionalidade superveniente da cobrança do adicional destinado ao FECOP realizada pelos Estados e Distrito Federal nas operações com bens e serviços considerados pelo legislador complementar como essenciais e indispensáveis. Afinal, a superfluidade e a essencialidade são conceitos antagônicos e auto excludentes.
Em decisões mais recentes, o STF vem reconhecendo a plausabilidade da tese de que a legislação estadual concernente ao FECOP, mesmo após a EC nº 42/2003, poderia ser derrogada por lei federal superveniente naquilo em que ambas forem conflitantes[5]:
“Agravo regimental em suspensão de segurança. Adicional de ICMS criado por Estado para financiamento do respectivo Fundo de Combate à Pobreza (art. 82, § 1º, do ADCT). Validade da legislação estadual naquilo em que não conflitar com as EC nºs 33/2001 e 42/2003 até que sobrevenha a lei complementar federal. Ofensa à ordem e economia públicas. Efeito multiplicador. Agravo regimental ao qual se nega provimento.
É plausível a tese de que a legislação estadual concernente ao Fundo de Combate à Pobreza naquilo em que não conflitar com as EC nºs 33/2001 e 42/2003 vigora até a edição de lei complementar federal. Precedentes (ACO nº 1.039/MS e ADI nº 5.733/AM). […]”.
Assim, espera-se que a inconstitucionalidade da continuidade da cobrança do adicional de ICMS destinado ao financiamento do FECOP sobre operações com bens ou serviços classificados pela Lei Complementar nº 194/2022 seja amplamente reconhecida pelo Judiciário quando provocado pelos contribuintes, uma vez que a exação viola o disposto no art. 82, §2º do ADCT e contraria princípios constitucionais que norteiam o sistema jurídico tributário brasileiro, como é o caso dos princípios da legalidade, da essencialidade e seletividade, previstos nos artigos 150, I e 155, §2º, III, todos da CF/88.
ANA PAULA LICHFETT BORGES – Advogada, pós graduanda em direito tributário pelo INSPER, pós graduada em direito tributário pelo IBET e formada em direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Fonte: Site Jota - Por Ana Paula Lichfett Borges