Do caos aberto ao sistema fechado: a lógica do novo IVA
Enviado Sexta, 22 de Agosto de 2025.Mais do que simplificação, é uma mudança de paradigma. Pela primeira vez, nosso sistema tributário funcionará como um circuito completo, sem vazamentos
Um sistema fechado é como um circuito elétrico. Só funciona se todas as conexões estiverem ativas, sem falhas ou interrupções. Essa é a lógica que inspira a reforma tributária brasileira.
O IVA nasce para ser um sistema fechado, em que cada débito gera crédito na etapa seguinte, com lastro financeiro e sem espaço para fraude ou inadimplência. Isso vale para toda a cadeia de produção, nas operações entre empresas no regime regular (B2B).
Em comparação, o atual sistema de tributação no Brasil é aberto, no pior sentido. Estamos sujeitos a inconsistências, incertezas e manipulações.
Hoje, não há coerência entre débitos e créditos. No PIS e Cofins, há situações em que o fornecedor paga 3,65% e o adquirente se credita a 9,25%, e outras em que o fornecedor paga 9,25% e o adquirente não se credita. Na aquisição de serviços, o custo de até 5% de ISS não é recuperado. O ICMS pago em um Estado é difícil de ser aproveitado no seguinte.
Agora mesmo, estamos acompanhando a investigação de um suposto caso de corrupção bilionária em São Paulo, com acusação de pagamento de propina para liberação de créditos de ICMS. É um escândalo, tanto pelo ato investigado, quanto pela ótica de que as empresas não deveriam estar sujeitas a obstáculos para recuperar seus créditos.
A reforma tributária fecha esse circuito com cinco pilares fundamentais.
O primeiro é a base ampla. Todas as vendas ficam sujeitas à incidência do IVA (débitos) e todos os tributos pagos nas compras podem ser recuperados (créditos). A exceção são bens e serviços consumidos por pessoas físicas, que devem mesmo estar sujeitos à tributação definitiva.
O segundo é a vinculação nota a nota. O débito é controlado por nota de saída e, o crédito, registrado por nota de entrada. O sistema de apuração fornecerá as informações ao contribuinte em tempo real, com acesso on-line. Não há mais pagamento sem identificação.
Terceiro, o valor do crédito é equivalente ao do débito. O fornecedor pagou R$ 26 de imposto? Crédito de R$ 26. Pagou R$ 11? Crédito de R$ 11. Pagou zero? Crédito zero. Neutralidade tributária. O empresário poderá se organizar como preferir, internalizando ou terceirizando atividades, com o mesmo efeito tributário final.
O quarto pilar é o crédito financeiro. A apropriação do crédito ocorre na data em que o débito é pago. Todo crédito tem lastro em um débito quitado. Isso evita fraudes, como a geração de créditos a partir de notas frias, sem recolhimento correspondente, e reduz a inadimplência tributária nas operações entre empresas.
Quinto, o split payment. O adquirente poderá recolher diretamente aos cofres públicos o tributo devido pelo fornecedor, de forma automática (via prestadores de serviços de pagamento, como emissores de boletos) ou manual (guia avulsa). O mecanismo funciona como garantia: se o fornecedor não quitar o tributo até o vencimento, o valor será destacado do pagamento e direcionado ao governo, assegurando o crédito do comprador.
Esse sistema possibilita à Receita Federal e ao Comitê Gestor do IBS colocarem em prática os objetivos da reforma, como o creditamento integral nas compras e a devolução rápida de eventuais sobras de créditos, após a compensação de débitos. Exportadores, cujas vendas não serão tributadas, recuperarão todo o custo fiscal embutido nos seus insumos, o que hoje não ocorre. O mesmo valerá para empresas em fase pré-operacional, que reduzirão o seu custo tributário e liberarão mais recursos para investimentos.
Os litígios serão reduzidos. A glosa de créditos pelo Fisco se tornará desnecessária, já que todo crédito terá lastro em débito pago. Sobrarão apenas as conhecidas exceções relativas a bens e serviços consumidos por pessoas físicas.
Do lado das empresas, o novo sistema exigirá mudanças de comportamento.
As grandes já começam a educar seus fornecedores sobre a importância de emissão de nota fiscal e pagamento em dia dos tributos. No B2B, a tendência é o cliente exigir meio de pagamento com split para se proteger do risco de atraso ou inadimplência tributária do fornecedor e manter o direito ao crédito na aquisição.
O fluxo de caixa das vendas pode ser impactado, mas apenas se o prazo médio de recebimento dos clientes for mais curto do que o vencimento dos tributos. Do lado das compras, o crédito será apropriado no dia da extinção do débito tributário pelo fornecedor, no mês da venda ou no mês seguinte. Não precisa esperar o pagamento das parcelas de compras a prazo.
No fluxo de caixa, vale calcular também o efeito do fim do PIS e Cofins sobre receitas financeiras e o crédito inédito do IVA sobre despesas financeiras com empréstimos e financiamentos bancários.
O IVA brasileiro, bem implementado, será um verdadeiro sistema fechado: coeso, previsível e protegido das manipulações do passado. Mais do que simplificação, é uma mudança de paradigma. Pela primeira vez, nosso sistema tributário funcionará como um circuito completo, sem vazamentos. O único cuidado é não travar demais a ponto de não permitir divergências legítimas de interpretação entre Fisco e contribuinte.
O interesse de todos deve se alinhar nesse sentido. Como a reforma manterá a carga tributária estável, a cada R$ 1 que um mau pagador paga, será R$ 1 a menos cobrado dos bons pagadores. O resultado será uma alíquota de referência mais baixa.
Bom para o ambiente de negócios, bom para o país.
- Daniel Loria é sócio do Loria Advogados e ex-diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária no Ministério da Fazenda
Fonte: Valor Econômico - Opinião