Natureza jurídica do Comitê Gestor, resolução do

Enviado Segunda, 09 de Junho de 2025.

Ampliação da função coordenadora da União após a reforma tributária

A reforma tributária trazida pela EC nº 132/2023 avançou exatamente na direção de ampliar a competência legislativa exclusiva da União como regente da federação, reduzindo a competência legislativa comum.

Com relação ao IBS, que é o principal tributo estadual e municipal, a competência para instituir é exclusiva da União, nos termos do artigo 156-A: “Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios”. A referência que o artigo faz à competência compartilhada é alusiva apenas à titularidade de receita.

Da mesma forma, a competência legislativa que antes era comum (concorrente) para tratar de obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência, agora, com relação ao IBS, é também exclusiva da União. Nesse mesmo sentido, a competência legislativa, que antes era comum para a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos, para a definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, agora, com relação ao IBS, também é exclusiva da União.

Foi deixada aos estados, basicamente, a competência legislativa para fixar alíquotas. O artigo 156-A, IV, da CF diz que o IBS “terá legislação única e uniforme em todo o território nacional, ressalvado o disposto no inciso V”, enquanto o artigo 156-A, V, diz que “cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica”.

Dessa maneira, estados e municípios não têm mais competência legislativa em matéria tributária, pelo menos em relação ao IBS. A tendência é que no futuro a percam para todos os impostos.

Criação do Comitê Gestor

Quanto à competência tributária material comum, com relação ao IBS, estados e municípios a mantêm, limitada para fiscalizar, lançar, autuar, inscrever em dívida ativa e ajuizar execuções fiscais. Porém, essa competência é apenas executória, pois agora não possuem qualquer poder de decisão. Em outras palavras, tratando-se de IBS, estados e municípios possuem autonomia administrativa, mas não autonomia política, salvo para fixar alíquotas.

Apesar de manterem alguma competência material, estados e municípios perderam as principais atribuições para o Comitê Gestor, que é agora responsável por:

I – editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto;
II – arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre estados, Distrito Federal e municípios;
III – decidir o contencioso administrativo.

Até a competência para arrecadar os tributos é materialmente da União: artigo 156-A, §4º.

Ora, quem legisla e também regulamenta, interpreta e decide conflitos, praticamente, possui todo o poder. Quem interpreta, legisla em segundo grau, e quem decide conflitos legisla no caso concreto.

O Comitê Gestor assumiu o papel de “dealer” em um cassino onde estados e municípios são apenas jogadores obrigatórios. Ele embaralha as cartas (regulamenta), distribui a mão (interpreta a legislação), arbitra as disputas (decide conflitos) e ainda fica com a casa (arrecada). Os demais entes federados podem apenas apostar suas alíquotas, mas as regras do jogo, o resultado das rodadas e a distribuição dos prêmios ficam inteiramente nas mãos de quem controla o baralho.

Tanto é verdade essa concentração de poderes que, no sistema de split payment previsto nos artigos 31 a 35 da LC 214/25 — método pelo qual uma parcela da fatura paga será imediatamente apartada para quitação dos tributos sobre o consumo no momento da liquidação financeira —, toda a interpretação da legislação, dos regulamentos e daquilo que vier a ser objeto de contencioso já vem embutida nas declarações pré-preenchidas, calculadoras automáticas e modelos padronizados de notas fiscais.

Estados e municípios descobrirão como interpretar a legislação tributária apenas quando o sistema automatizado do Comitê Gestor processar as transações e entregar-lhes o resultado final. É como se os antigos soberanos tributários fossem informados das regras do jogo somente depois que todas as cartas já foram jogadas e os dados, lançados.

Natureza jurídica do Comitê Gestor

A pergunta derradeira: esse poder de regulamentar, interpretar e decidir conflitos não pertence ao Comitê Gestor? E o Comitê Gestor não é comandado por estados e municípios. Não seria ele um órgão misto, ao mesmo tempo estadual e municipal?

A resposta é negativa.

O Comitê Gestor não é um órgão dos estados, nem dos municípios. É um órgão de todos os estados e todos os municípios. E todos os estados e municípios juntos formam a União.

Como visto, não há uma quarta ordem jurídica, mas apenas três: estadual/municipal, total nacional e parcial nacional. O Comitê Gestor inclui-se exatamente na ordem jurídica total nacional.

É, portanto, órgão da União, mesmo que sua composição deliberativa seja formada por representantes apenas dos estados e municípios.

Nesse ponto, é preciso distinguir dois conceitos importantes: a lei da participação e a lei da autonomia. Pela “lei da participação“, os estados “tomam parte no processo de elaboração da vontade política válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da federação […]” [17]. Através da lei da autonomia, por sua vez, estados e municípios movimentam-se nos espaços de competência material e legislativa fixados constitucionalmente.

No Comitê Gestor, estados e municípios participam cumprindo a lei da participação.

É verdade que o artigo 156-B, §2º, V, da Constituição mantém com os auditores fiscais estaduais e municipais as atribuições tradicionais de fiscalização, lançamento e cobrança administrativa do IBS, bem como preserva com as procuradorias locais a representação judicial relativa ao tributo.

Contudo, essa aparente manutenção de competências esconde uma transformação profunda: todos esses órgãos deverão atuar rigorosamente coordenados e nos exatos termos orientados pelo Comitê Gestor. Na prática, auditores e procuradores estaduais e municipais não perderão sua autonomia administrativa — continuarão sendo servidores de seus respectivos entes —, mas certamente terão que aprender a trabalhar como extensões operacionais de um ente central de natureza jurídica federal.

Na prática, auditores e procuradores estaduais e municipais não perderão sua autonomia administrativa — continuarão sendo servidores de seus respectivos entes —, mas certamente terão que aprender a trabalhar em harmonia sinfônica, todos dirigidos pela mesma batuta do Comitê Gestor. O Comitê Gestor, por sua vez, terá que trabalhar em harmonia com a Receita e a PGFN. A rigor, o que se desenha é uma nacionalização parcial das carreiras estaduais e municipais, que manterão seus vínculos originários, mas executarão partituras escritas e regidas por um maestro de natureza federal, criando uma orquestra tributária nacional onde cada músico toca seu instrumento local, mas todos seguem a mesma partitura nacional.

Por todas essas razões, o Comitê Gestor, como representante de todos os estados e de todos os municípios — ou seja, da União enquanto coordenadora da federação —, é o ente que deve necessariamente figurar como parte nas demandas judiciais, tanto no polo ativo, nas execuções fiscais, quanto no polo passivo, nas ações propostas pelos contribuintes.

Não se trata aqui de legitimação extraordinária, mas de legitimação processual comum e natural, decorrente de sua posição institucional.

É importante perceber que, administrativamente, o Comitê Gestor já é o responsável exclusivo por toda a arrecadação, custódia de recursos, repartição de receitas e administração do complexo sistema de créditos e débitos da não-cumulatividade do IBS.

Não há, portanto, outra opção juridicamente coerente e praticamente viável, sob pena de multiplicação exponencial de demandas idênticas em 27 tribunais estaduais e milhares de varas pelo país, instalando-se um verdadeiro caos fiscal e judicial que tornaria letra morta todos os avanços prometidos pela reforma tributária. A unificação do polo processual é, assim, corolário lógico e inevitável da unificação administrativa já operada pelo sistema.

Competência jurisdicional da Justiça Federal

A prova é tanta que o IBS é idêntico à CBS. A União reclama harmonia e comunidade de propósitos. Portanto, toda carga decisória a ser exercida pelo Comitê Gestor terá que ser no mesmo sentido das decisões tomadas para a CBS. Quem legislará, regulamentará, interpretará e decidirá conflitos em matéria de CBS? A União, que em tema de CBS/IBS, ocupa dupla função: gestora da federação (IBS) e superente federativo (CBS).

Disso decorre a mais importante conclusão: a competência jurisdicional para processar e julgar qualquer demanda envolvendo contribuinte e ato do Comitê Gestor será da Justiça Federal, pois, a rigor, além de ser órgão do Estado federal e, portanto, da União, o tributo é um só, não podendo ser interpretado por esta e por mais 27 tribunais estaduais de forma concorrente. A União há de se superpor [18], mas não na condição de superente, e sim na condição de gestora da federação.

Aliás, a existência de um ramo do Poder Judiciário destinado a processar e julgar demandas do interesse da União, na condição de gestora e superente, é pressuposto essencial para a existência da federação.

A alternativa para esta supercompetência da Justiça Federal existe. É a criação de um ramo do Poder Judiciário especializado em matéria tributária, e com composição mista, estadual e federal, nos moldes da Justiça Eleitoral ou no formato de uma Justiça 4.0, tema que está atualmente sendo trabalhado, exaustivamente, por um GT criado pela Portaria nº 96, de 08 de abril de 2025, expedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, no âmbito do CNJ.

Conclusões

A análise do papel dual da União na federação brasileira revela a necessidade de um equilíbrio constante entre coordenação e autonomia. A União deve ter poderes suficientes para garantir a unidade e a coesão nacional, enquanto respeita a autonomia dos estados e municípios.

A reforma tributária recente, que fortalece a função coordenadora da União, é um passo nessa direção, mas deve ser monitorada para evitar excessos de centralização.

No fim, a sustentabilidade da federação depende da capacidade de todos os entes federativos trabalharem juntos, respeitando suas competências e colaborando para o desenvolvimento do país.

O Poder Judiciário terá um papel crucial na interpretação e aplicação das novas normas tributárias, garantindo que a União, como coordenadora, e os estados e municípios, como entes autônomos, operem dentro dos limites constitucionais.

Como adverte Paulo Bonavides: “A superioridade do Estado federal sobre os Estados federados fica patente naqueles preceitos da Constituição federal que ordinariamente impõem limites aos ordenamentos políticos dos Estados-membros, em matéria constitucional, pertinentes à forma de governo, às relações entre os poderes, à ideologia, à competência legislativa, à solução dos litígios na esfera judiciária etc.” [18].

No complexo xadrez constitucional que se desenha com a reforma tributária, é fundamental decifrar definitivamente o enigma do rei duplo. Nesta partida, toda a federação — União, estados e municípios — deve jogar com as mesmas peças, sejam elas brancas ou pretas, pois o verdadeiro adversário não se encontra do outro lado do tabuleiro federativo.

O inimigo a ser derrotado não é o contribuinte, que busca segurança jurídica para seus investimentos; não são os estados e municípios, que lutam por autonomia e recursos; não é sequer a União, que coordena o desenvolvimento nacional.

O adversário real é a hiperlitigiosidade que paralisa o sistema, o imposto hermenêutico que multiplica incertezas, a insegurança jurídica que afugenta capitais, a injustiça fiscal que corrói a legitimidade do Estado e a ausência de um ambiente de negócios hígido que torna nosso país menos atrativo para investidores externos e menos cooperativo para empreendedores nacionais.

Somente quando todos os entes federativos compreenderem que estão do mesmo lado deste tabuleiro — unidos contra esses verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento — é que o Comitê Gestor poderá cumprir sua promessa de ser o grande coordenador de uma vitória coletiva, e não apenas mais um jogador disputando poder em um jogo onde todos acabam perdendo.

- Bianor Arruda Bezerra Neto: é juiz federal, doutor pela PUC-SP e professor do Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).

Fonte: Site Consultor Jurídico - Opinião