Reforma administrativa: Análise crítico-prospectiva da PEC 32/20
Enviado Sexta, 16 de Maio de 2025.O escrito analisa os fundamentos da proposta legislativa, seus impactos e perspectivas para a Administração Pública, observando os princípios constitucionais norteadores do serviço público.
A proposta de reforma administrativa iniciada com a PEC 32/20 representa um dos mais significativos movimentos de transformação estrutural do serviço público brasileiro nas últimas décadas. Este escrito analisa criticamente os fundamentos desta proposta, seus possíveis impactos e as perspectivas futuras para a Administração Pública brasileira, considerando os princípios constitucionais norteadores do serviço público e as tendências contemporâneas de gestão pública.
O Brasil experimentou ao longo de sua história diferentes modelos de Administração Pública, cada um refletindo concepções distintas sobre o papel do Estado e a natureza do serviço público. A compreensão desta evolução é fundamental para contextualizar a atual proposta de reforma.
A Administração Pública brasileira passou por diversas fases evolutivas, iniciando com o modelo patrimonialista, onde não havia clara distinção entre o patrimônio público e privado, passando pelo modelo burocrático, focado na impessoalidade e na padronização de procedimentos, até chegar ao modelo gerencial. Esta trajetória foi marcada pela constante busca por maior eficiência e pela superação de resquícios patrimonialistas que ainda permeiam a cultura administrativa nacional.
A reforma burocrática introduziu importantes garantias ao serviço público, como a estabilidade dos servidores, que tinha como função principal estabelecer um corpo funcional técnico e permanente, imune às alternâncias de poder político. Por sua vez, a reforma gerencial é fortemente influenciada por uma onda neoliberal que atingiu diversos países, trazendo conceitos empresariais para a gestão pública.
O art. 37 da CF/88 estabeleceu princípios fundamentais para a Administração Pública brasileira, entre eles o da impessoalidade, que determina que a prestação administrativa deve ser oferecida ao cidadão sem preconceitos ou privilégios, constituindo base axiológica para o serviço público moderno. Este princípio está intimamente relacionado à estabilidade do servidor público, pois tal garantia possibilita a atuação técnica e imparcial, livre de pressões políticas momentâneas.
A PEC 32/20 foi apresentada pelo governo Federal com o discurso oficial de reduzir gastos públicos, modernizar o Estado e melhorar os serviços prestados à população. Contudo, a análise detalhada de seu conteúdo revela transformações profundas na estrutura do serviço público brasileiro.
Entre as principais alterações propostas pela PEC 32/20 estão novas regras para a estabilidade dos servidores públicos, modificando significativamente o regime jurídico atual. A proposta torna muito mais difícil a obtenção da garantia de estabilidade, o que é visto por muitos especialistas como um retrocesso que pode revitalizar traços patrimonialistas na Administração Pública.
O texto da reforma administrativa também prevê novos tipos de vínculos com a administração pública, flexibilizando as formas de contratação e alterando a estrutura de carreiras. Estas mudanças são justificadas pela busca de maior eficiência, mas levantam preocupações sobre a continuidade de políticas públicas e a preservação do interesse público frente a pressões políticas circunstanciais.
As críticas à PEC 32/20 centram-se principalmente no enfraquecimento da estabilidade do servidor público, considerada ferramenta essencial para garantir a impessoalidade na Administração Pública. Segundo os estudos analisados, a estabilidade possui uma função tripla: a) garantir a manutenção de políticas públicas para além dos mandatos eleitorais; b) proteger os servidores de interesses políticos momentâneos; e c) oferecer uma contrapartida ao poder unilateral do Estado de alterar as regras do regime jurídico.
A implementação da reforma administrativa proposta pela PEC 32/20 produziria efeitos diferenciados nos diversos setores do serviço público, com potenciais implicações para áreas essenciais como educação e saúde.
Estudos apontam que a aprovação da PEC 32/20 em seu texto original poderia trazer impactos significativos para a educação pública brasileira. A possível precarização dos vínculos empregatícios dos profissionais da educação poderia comprometer a continuidade de projetos pedagógicos e afetar a qualidade do ensino oferecido.
A análise documental realizada por pesquisadores revela uma disparidade entre as intenções expressas nos discursos oficiais e os impactos efetivos que poderiam resultar da reforma no setor educacional. Esta discrepância sugere a necessidade de um debate mais aprofundado sobre os efeitos da reforma na garantia do direito constitucional à educação.
Embora os resultados de pesquisa não abordem diretamente os efeitos em outros setores específicos, é possível inferir impactos similares em outras áreas essenciais do serviço público. O setor de saúde poderia ser afetado pela descontinuidade de programas e pela potencial rotatividade de profissionais, especialmente em momentos de crise como a pandemia de Covid-19, que evidenciou a importância de um sistema público de saúde estruturado.
A transformação digital do serviço público brasileiro representa uma alternativa modernizadora que poderia trazer ganhos de eficiência sem comprometer os princípios fundamentais da Administração Pública.
Pesquisas sobre a transformação digital no setor público brasileiro indicam uma crescente busca por eficiência, efetividade e eficácia através da implementação de serviços digitais. A digitalização tem sido estudada como forma de atender às demandas por modernização administrativa sem necessariamente alterar pilares fundamentais do regime jurídico dos servidores. O período de 2015 a 2021 foi marcado por importantes medidas governamentais para implementar serviços públicos digitais, embora persistam desafios significativos para a plena realização deste potencial.
A pandemia da Covid-19 acelerou este processo de digitalização, demonstrando a capacidade de adaptação do serviço público frente a crises.
Um ponto crucial para o sucesso da modernização administrativa é a compreensão de que a transformação digital não substitui, mas complementa o capital humano no serviço público. Os servidores estáveis e qualificados são essenciais para a implementação e continuidade dos projetos de digitalização, garantindo que as mudanças tecnológicas sigam princípios constitucionais como a impessoalidade e a eficiência.
O dimensionamento adequado da força de trabalho representa uma ferramenta importante para a modernização administrativa, permitindo ajustes baseados em critérios técnicos e não meramente políticos.
Estudos sobre metodologias de dimensionamento da força de trabalho em órgãos públicos, como o realizado no TCE-RJ - Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, demonstram a crescente preocupação com esta temática. A própria reforma administrativa proposta pela PEC 32/20 prevê respaldo constitucional ao dimensionamento da força de trabalho, que deverá ser observado e implementado em todas as esferas de governo.
As metodologias de dimensionamento identificadas em pesquisas comparativas envolvem elementos como mapeamento de atividades, definição do tipo de recurso por produto, estimativa de recursos por tarefas e previsão de demanda. Estas abordagens técnicas podem contribuir para uma alocação mais eficiente de recursos humanos no serviço público.
O discurso sobre o "inchaço" da máquina pública frequentemente desconsidera as especificidades de cada setor e as demandas reais da população por serviços públicos de qualidade. O dimensionamento técnico da força de trabalho permite superar argumentos simplistas e identificar áreas com déficit ou superávit de pessoal, contribuindo para uma gestão mais racional dos recursos humanos.
As perspectivas futuras para o serviço público brasileiro dependem significativamente das escolhas políticas e institucionais relacionadas à reforma administrativa, bem como da capacidade de conciliar modernização e preservação de princípios constitucionais.
O futuro do serviço público brasileiro pode seguir diferentes caminhos, dependendo do desenho final da reforma administrativa e de sua implementação. Um cenário possível é a flexibilização moderada do regime jurídico dos servidores, mantendo garantias essenciais como a estabilidade para carreiras típicas de Estado, combinada com instrumentos modernos de gestão e avaliação de desempenho. Outro cenário, mais preocupante, seria a fragilização excessiva das garantias dos servidores, com potenciais riscos para a continuidade de políticas públicas essenciais e para a resistência a pressões políticas conjunturais. Este cenário poderia representar retrocesso ao patrimonialismo que historicamente caracterizou a Administração Pública brasileira.
O desafio central para o futuro do serviço público brasileiro é encontrar o equilíbrio entre a busca legítima por maior eficiência e a preservação de garantias constitucionais fundamentais, como a impessoalidade e a continuidade dos serviços públicos. Este equilíbrio passa necessariamente pela valorização do servidor público como agente de transformação, e não como obstáculo à modernização.
A análise crítico-prospectiva da reforma administrativa proposta pela PEC 32/20 revela um momento decisivo para o futuro do serviço público brasileiro. Embora a busca por maior eficiência e modernização seja um objetivo legítimo, as evidências científicas indicam que o enfraquecimento excessivo da estabilidade do servidor público pode comprometer o princípio constitucional da impessoalidade e favorecer o ressurgimento de práticas patrimonialistas. O futuro do serviço público brasileiro depende da capacidade de conciliar modernização administrativa, transformação digital e preservação de garantias fundamentais para a independência técnica dos servidores. Alternativas como o aprimoramento dos mecanismos de avaliação de desempenho, o dimensionamento técnico da força de trabalho e a aceleração da digitalização de serviços podem trazer ganhos de eficiência sem comprometer os princípios constitucionais que sustentam o Estado Democrático de Direito.
A reforma administrativa não deve ser concebida como um fim em si mesma, mas como um meio para aprimorar a capacidade do Estado de responder às demandas crescentes da sociedade por serviços públicos de qualidade.
Neste sentido, é essencial que as propostas de mudança sejam fundamentadas em evidências científicas e no respeito aos princípios constitucionais, garantindo assim um serviço público eficiente, impessoal e comprometido com o interesse público.
Fonte: Migalhas