Em alta, gastos tributários de Estados e União beiram 7,2% do PIB
Enviado Quarta, 16 de Abril de 2025.Levantamento do FGV Ibre mostra salto de 0,3 ponto percentual sobre 2024
De 1,3% do PIB em 2002, os gastos tributários federais devem crescer para 4,8% em 2025. Nos Estados, o nível de gastos neste ano deve ser de 2,4%, metade da taxa da União. Juntos, os dois níveis devem chegar este ano a 7,2% do PIB, em avanço em relação aos 6,9% de 2024. Embora não sejam considerado muito alto em comparação a outros países, esse tipo de gasto vem crescendo ao longo do tempo e demanda melhor governança. Gastos tributários são políticas públicas que trazem renúncia fiscal e se dirigem a um grupo específico que se beneficia de tratamento diferente do que é considerado o sistema tributário de referência.
O gasto tributário no Brasil tende a ser irreversível porque é pouco transparente e há dificuldade de medir seu tamanho. Além disso, fica apartado do conjunto das políticas públicas e tende a ter baixo retorno social. É necessário criar uma regulamentação geral dos gastos tributários. Isso inclui desde a uniformização de conceitos e metodologias até a normatização de seu funcionamento. Precisa abranger também a avaliação de gastos no âmbito de Estados e municípios. O debate pode ajudar na consolidação fiscal num horizonte mais longo sem criar “ruído político muito grande” no curto prazo.
A avaliação e os dados são de estudo do economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), juntamente com o economista Giosvaldo Teixeira Júnior, também pesquisador do FGV Ibre. O levantamento parte de 2002 até o momento.
Os gastos tributários da União e Estados devem alcançar R$ 821,3 bilhões em 2025, sendo R$ 544,5 bilhões em 2025 e R$ 276,8 bilhões de Estados. Os dados foram levantados do demonstrativo de gastos tributários da Receita Federal do Brasil, dos Projetos de Lei Orçamentária (Ploas) federais e de Leis de Diretriz Orçamentária (LDOs) dos Estados.
Pires defende que é preciso uma lei geral, com definição de um processo legal para os gastos tributários. “Ter que observar uma série de condições já restringiria a criação desse tipo de gasto. Também deveríamos ter um órgão gestor. Não tem cabimento o gasto tributário, entendido como política pública, ser criado sem que nenhum órgão federal ou estadual tome conta dele. É preciso uma uniformização das metodologias de estimação para que esse gasto possa ser calculado mais ou menos da mesma forma, tornando os dados comparáveis e trazendo clareza maior.”
Essa normatização geral, avalia, teria papel similar ao que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) teve para estruturar estatísticas fiscais e finanças públicas do país. “A LRF se desgastou ao longo do tempo, mas pode ser reformulada, com reforço de compromissos políticos e critérios técnicos, numa evolução normal da legislação. Com o gasto tributário seria o mesmo. Uma legislação inicial trará impactos e seria possível melhorá-la à medida que perder o poder de enforcement.”
Do ponto de vista político, diz, seria bom caminho para o governo. “Vemos o governo já preocupado com o ciclo eleitoral. No Congresso, o ambiente de cooperação que possibilitava ao Ministério da Fazenda aprovar medidas de ajuste parece ter ficado um pouco mais difícil. A discussão sobre gastos tributários tem efeito de longo prazo, sem necessariamente levar a grande conflito distributivo político no curto prazo. Avançar nessas medidas ajudaria no processo de consolidação fiscal, sem gerar ruído político muito grande.”
Para abordar a complexidade do tema, Pires cita frase de William Deming, considerado o “pai” da gestão por qualidade: “Não se gerencia o que não se mede, não se mede o que não se define, não se define o que não se entende, e não há sucesso no que não se gerencia”. A frase, diz, expressa o estado de coisas que envolvem os gastos tributários, um fenômeno que não é só brasileiro, mas mundial.
Nem toda renúncia fiscal, explica, é gasto tributário. Para ser definido como tal, explica, o incentivo fiscal precisa ser concedido a determinados setores, grupos econômicos ou sociais. “É preciso haver uma renúncia fiscal ou o Estado tem que perder alguma receita com o tratamento diferenciado.”
Para isso, ressalta, é preciso definir, portanto, qual o sistema de referência. É o que permite saber o que é o “tratamento normal” do “tratamento diferenciado”. A definição disso, observa, envolve discricionariedade muito grande, o que gera controvérsia. “E no gasto tributário há uma entrada de receita no Orçamento, que depois tem um gasto associado, financiado por essa receita. Há uma saída do Orçamento gerando um gasto. Ou seja, existe uma natureza de política pública nessa discussão que é muito importante.”
Na esfera federal, exemplifica, considerando o Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) de 2025, o Simples Nacional está no topo da lista, com 22,2% do gasto tributário total da União, seguido de incentivos à agricultura e agroindústria. Na sétima posição, Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio representam 5,5%.
O Simples, explica, é um gasto tributário típico. “É um benefício fiscal para empresas consideradas de pequeno porte, porque elas não têm o mesmo nível de produtividade, são grandes empregadoras, não têm acesso ao sistema de crédito. Zona Franca de Manaus é outro exemplo, com renúncia fiscal grande para atividades empresariais na Zona Franca.”
Mas a atual isenção de lucros e dividendos, que o governo agora quer voltar a tributar, diz, não é considerada como gasto tributário, porque não diferencia ninguém. “Todos que têm renda de lucros e dividendos são isentos.”
“Essa definição envolve grau de arbitrariedade grande”, diz Bráulio Borges, também pesquisador do FGV Ibre. “O Simples, que é gastos tributário, é muito comparado com o lucro presumido, que gera também renúncia fiscal e resulta em pejotização. Mas o lucro presumido não é gasto tributário por ser considerado pela Receita Federal como parte do sistema tributário de referência. O Repetro também não é gasto tributário”, diz, referindo-se ao regime especial que dá incentivo fiscal à importação de determinados equipamentos para exploração de petróleo.
A questão não envolve o que é justo ou não, destaca Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre. Esse debate, avalia, mostra o quão complexa é a discussão de gasto tributário e os cuidados que o tema merece. “Por isso estabelecer uma legislação definindo bem o que são gastos tributários é uma saída inexorável no processo.”
“Como envolve alguma arbitrariedade, a própria definição de gasto tributário causa falta de transparência, um dos grandes problemas desse tipo de gasto: você não sabe exatamente o que é e o que não é, sempre há margem para discussão”, observa Pires.
Mesmo quando se define a renúncia fiscal como gasto tributário, diz, a mensuração é complicada, porque há sempre comparação entre as empresas beneficiadas com as empresas com “tratamento normal”. “Mas, se você tirar o incentivo, muito provavelmente as indústrias vão se organizar de outra forma. Não se consegue captar o efeito comportamental para ter a medida correta da renúncia.”
Por isso, diz Pires, a dificuldade de monitoramento e avaliação é enorme. “Isso resulta em fragmentação muito grande do Orçamento público. Há uma série de políticas que nem sequer passam de maneira recorrente pelo Congresso. Não há clareza sobre o tipo de política pública que está no Orçamento. Isso dificulta dimensionar qual é o incentivo total que determinados setores econômicos recebem e leva à falta de coordenação das políticas. Essas questões levam a uma tendência de irreversibilidade. Porque os lobbies atuam exatamente nessa opacidade, nessa dificuldade de monitorar e de avaliar.”
É mais fácil fazer discussões sobre política de pessoal, que se discute e reajusta todo ano, diz. “Mas não conseguimos fazer o mesmo nível de debate no gasto tributário. Por isso esse gasto tende a ter retorno social muito mais baixo do que políticas públicas estruturadas e discutidas todo ano no Orçamento, como Previdência, Farmácia Popular, Bolsa Família.”
Borges lembra que o Perse - benefício destinado a empresas do setor de festas e eventos, afetadas pela regras de isolamento social durante a pandemia de covid-19 - é um gasto tributário que custou R$ 15 bilhões ao ano, quase três vezes mais do que o setor e o governo estimaram inicialmente. Foi possível detectar isso, lembra, com a nova Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), que pode permitir avaliação mais adequada no nível federal.
“O caso do Perse é emblemático. A Dirb vai ajudar a medir melhor o custo fiscal e reforçar o debate sobre a necessidade de melhorar a governança e controle”, defende Pires.
Mapeamento feito pelo Council of Economic Policies (CEP), sediado na Suíça, mostra que o Brasil está na sétima colocação no ranking de transparência de gastos tributários. A Coreia do Sul ficou em primeiro lugar. No caso do Brasil o ranking se baseou, conta Pires, em avaliação feita por pesquisadores do FGV Ibre, que incluiu análise dos gastos tributários dos Estados. Mas Pires lembra que, entre os países analisados pelo CEP, “todo mundo vai mal” no tema da transparência. O Brasil, aponta, ficou em sétimo com pontuação de 65,3 de um máximo de 100.
Houve melhora gradual nos gastos tributários do país, ao longo do tempo, pondera Pires. No nível federal, há mais transparência e existe estabilidade metodológica, tornando os dados comparáveis. Na parte da avaliação, porém, diz, “estamos mais devagar” e há pontos de atenção. Há renúncias fiscais, diz, que não são considerados gastos tributários e para as quais não há muitas informações. “A Receita podeira ter instrumentos de divulgação para medir qual é o custo fiscal do lucro presumido ou do Repetro, ainda que não sejam gastos tributários”, diz.
Há também pouco avanço na governança, diz. “Esse debate não existe no Brasil. No Bolsa Família, por exemplo, há lei que definiu quem tem acesso ao programa, quem administra, quais são os mecanismos de controle, há coordenação com Estados e municípios. Com gasto tributário isso não existe. Não há indicação de órgão gestor e nem definição de quem administra a política.”
Nos Estados, avalia, o critério do que é gasto tributário é bastante heterogêneo. “Cada um trata de um jeito. Há Estados, como Rio Grande do Sul e Espírito Santo, que melhoraram muito em governança, mensuração e transparência do gasto tributário. Mas, apesar de um de melhoria e preocupação crescente com o tema, os dados estaduais possuem muitas fragilidades, o monitoramento é precário e os sistemas de governança e avaliação são praticamente inexistentes.” Como houve dados inconsistentes e mudanças metodológicas no decorrer dos anos, explica, a série dos Estados permite comparar apenas dados desde 2023.
Pires destaca que os gastos tributários se concentram mais nos tributos sobre consumo. O total de gastos tributários equivale a 26,8% da arrecadação do país. Os tributos sobre consumo são 6,7%, pelos últimos dados disponíveis, de 2023.
Borges lembra que com a reforma tributária sobre consumo, com a introdução da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o nível de gastos tributários cairia 1,5 p.p. do PIB no nível federal e cerca de 2 p.p. no nível estadual, até 2032. Isso, porém, considera as condições atuais. Outros incentivos podem ser criados e é preciso lembrar que a reforma, explica, muda a lógica do sistema.
“Não sabemos, por exemplo, como as alíquotas zero ou reduzidas de CBS e IBS serão tratadas, se serão gastos tributários”, diz Pires. “Será preciso refazer a definição do sistema tributário de referência. Se for considerado que a alíquotas zero ou as reduzidas estão na Constituição e fazem parte do aspecto estrutural do imposto, pode ser que se tenha o mesmo entendimento que há para o lucro presumido hoje, por exemplo.” O lucro presumido tem impacto fiscal relevante, mas não é considerado gasto tributário.
Fonte: Valor Econômico