Criação de dois tributos permitiu destravar reforma após décadas, diz

Enviado Sexta, 27 de Setembro de 2024.

Melina Rocha explica modelo que será adotado pelo Brasil nos próximos anos

O principal entrave à aprovação da reforma tributária sempre foi a resistência de estados e municípios à criação de um imposto único sobre o consumo, administrado pela Receita Federal. Diante desse diagnóstico, a professora de Direito e consultora Melina Rocha decidiu estudar os sistemas de dois países que haviam encontrado uma solução para o mesmo problema.

Canadá e Índia transformaram um imposto utilizado em mais de 170 países, o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), em um tributo "dual". Esse é o modelo que será adotado pelo Brasil nos próximos anos e que viabilizou a aprovação da emenda constitucional da reforma tributária em 2023.

No caso brasileiro, consumidores e empresas irão pagar dois tributos na mesma guia. Um irá para a Receita Federal. O outro, para um comitê formado por estados e municípios. Haverá apenas um cadastro e uma nota fiscal. Serão substituídos cinco tributos repartidos entre todos os entes e que possuem regras específicas.

"Nosso ponto sempre foi esse. Somente com o modelo de IVA dual seria possível a aprovação da reforma, o que se mostrou verdadeiro", afirma Melina em entrevista à Folha.

"Até o secretário Bernard Appy, que sempre defendeu o IVA único, aceitou que, politicamente, seria a opção para que a reforma fosse aprovada."

O estudo sobre o IVA Dual teve início quando Melina estava no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O objetivo era oferecer um contraponto à proposta do CCIF (Centro de Cidadania Fiscal), entidade liderada na época por Appy, que elaborou a proposta que previa um único tributo.

Olhando o histórico das tentativas de reforma tributária desde a Constituinte, ela concluiu que o principal entrave era a questão federativa. Principalmente o receio de deixar toda a arrecadação nas mãos da União.

Melina foi ao Canadá estudar o sistema deles, uma nova versão daquele adotado na maior parte da Europa, da Ásia e da América Latina. Também foi feito estudo sobre o IVA Dual da Índia.

Foi elaborado então o modelo brasileiro, que acabou incluído pelo ex-senador Roberto Rocha na proposta de reforma apresentada pelo Senado em 2019, a PEC 110 —um contraponto à PEC 45, elaborada pelo CCiF e apresentada na Câmara pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP). Posteriormente, os dois textos foram unificados, resultando na emenda que está hoje na Constituição.

Melina explica que Índia e Canadá utilizam o IVA dual porque as constituições deles, assim como a nossa, trazem a competência compartilhada para tributar o consumo. Mas era necessária uma adaptação, porque no Brasil os municípios também são parte da federação, o que não acontece nesses outros países.

"A reforma aprovada foi inspirada nesses modelos, mas há diferenças. Teremos um modelo único, brasileiro, que foi adaptado à nossa federação", afirma.

Outra questão é que, nos dois modelos internacionais, a arrecadação nas operações envolvendo mais de um estado ou província fica a cargo do governo federal, que repassa o dinheiro.

"No Brasil, criamos a figura do Comitê Gestor justamente para não atribuir essa competência para a União, para respeitar a autonomia de estados e municípios com relação às operações do seu próprio tributo", diz a especialista.

Por aqui, chegou-se a pensar em uma câmara de compensações, o que daria poder quase absoluto a São Paulo para gerir a arrecadação dos demais estados, segundo Melina. Nesse formato, os municípios também ficariam dependentes de repasses estaduais, e as empresas teriam de se inscrever de forma individualizada em cada local.

Por isso, optou-se pelo modelo de um comitê em que há participação de 26 estados, Distrito Federal e 27 representantes dos municípios. Esse órgão vai centralizar a arrecadação e fazer a destinação dos recursos para o local em que está o consumidor do bem ou serviço.

O comitê também garante que o dinheiro não vai entrar no caixa de nenhum ente até que seja feita uma operação ao consumidor final.

"O comitê gestor vai reter os recursos na operações no meio da cadeia, porque esses recursos, na verdade, vão fazer jus ao crédito da operação subsequente. Isso dá uma maior segurança, principalmente para as empresas, que vão ter a garantia de que o crédito vai ser devolvido", afirma.

Benefícios

Melina afirma que o principal benefício da reforma percebido pelo consumidor será a transparência em relação à carga tributária de cada bem ou serviço. "Hoje, temos um sistema tributário tão caótico, que é impossível estimar qual a carga tributária que o consumidor está pagando. O mesmo produto vendido por uma empresa pode ter uma carga menor que o de outra que não faz jus a benefício fiscal."

Para as empresas, ela diz que o principal impacto é a limpeza de resíduos tributários do meio da cadeia produtiva. "Vai ficar mais barato produzir no Brasil, porque os empresários vão deixar de ter esse custo tributário. Isso deve impactar no preço dos produtos", afirma, citando também a desoneração do investimento e das exportações, a redução de litígios e a redução de custos com a simplificação do sistema.

Imposto mais moderno

Melina afirma que a reforma cria um imposto de acordo com o que há de mais moderno em termos de IVA, em relação às normas gerais. O sistema de arrecadação automático previsto (split payment) é até mais avançado do que em outros países. O grande número de exceções, por outro lado, remete a IVAs mais antigos, como os da Europa.

"Por conta do nosso ponto de partida, para que a reforma tributária fosse aprovada, tiveram que ser incluídas todas essas reduções de alíquotas, isenções, créditos presumidos e regimes diferenciados. Essa parte não segue os modelos mais modernos e as recomendações de organismos internacionais e de pesquisas acadêmicas", afirma. "Em relação à parte tecnológica, o sistema brasileiro estará à frente da maior parte dos países do mundo. Vai ser um modelo internacional."

O Brasil optou, por exemplo, em adotar uma não-cumulatividade mais ampla. Na maior parte dos países, afirma, há sempre um condicionante para o creditamento.

"No Brasil, propositalmente, não se colocou essa condicionante para a tomada do crédito. O contribuinte terá direito ao crédito sobre todas as suas aquisições", diz Melina. Haverá apenas a restrição a bens de uso e consumo pessoal, com uma lista definida.

Fonte: Jornal Folha de S. Paulo