Fora do Imposto Seletivo, alimento ultraprocessado afeta gasto com saúde
Enviado Terça, 30 de Julho de 2024.A inclusão dos alimentos ultraprocessados no Imposto Seletivo (IS), rejeitada pelos deputados na discussão da Reforma Tributária na Câmara, poderia elevar o consumo de alternativas mais saudáveis, reduzir despesas com saúde e também elevar renda dos brasileiros pela diminuição do tempo de vida perdido com essas doenças. As conclusões constam de um trabalho recente do Banco Mundial, que mostrou também que a medida têm caráter progressivo: os benefícios são proporcionalmente maiores para as famílias que figuram entre as 10% mais pobres da população e se diluem à medida em que aumenta a renda familiar, até ter um efeito neutro para camadas mais ricas. "Em discussões do tipo, a indústria alimentícia costuma argumentar que a tributação desses bens seria prejudicial aos consumidores, especialmente mais pobres. Os que os resultados do estudo sugerem é que não", resume Roberto Iunes, um dos autores. Os economistas adaptaram uma metodologia bastante utilizada para avaliar o custo-benefício de taxar outros produtos prejudiciais à saúde, como tabaco, o álcool e açúcar. Tomando como base o perfil de consumo tirado da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, eles analisam os efeitos de um imposto que eleve em 20% o preço final desses alimentos em três dimensões: variação da despesa total com esses bens e com possíveis substitutos, economia com despesas médicas e, por fim, potencial de incremento de renda obtido pela redução dos anos de vida perdidos por causas relacionadas a riscos die-téticos (relacionados à nutrição).
Via de regra, exercícios do tipo costumam gerar resultados negativos para o primeiro quesito e positivos para os outros dois. Isso ocorre porque muitos destes bens são considerados inelásticos - uma alta do preço tem pouco efeito sobre o consumo (já que se trata de um vício). Segundo Bernardo Dantas Coelho, que também assina o estudo, a ideia é mostrar que, apesar de o consumidor arcar com um custo maior pela compra do produto taxado, ele vai ganhar com menores despesas de saúde e uma vida produtiva mais longa.
A análise da taxação dos alimentos processados e ultraprocessados surpreendeu ao retornar resultados positivos também para o primeiro quesito, em praticamente todos os estratos de renda. "Por serem produtos com maior elasticidade [mais passíveis de serem substituídos na cesta de consumo], a alta do imposto libera uma renda que, proporcionalmente, conseguirá comprar maior quantidade de alimentos alternativos, como os in natura", explica Coelho. No primeiro decil de consumo, equivalente aos 10% mais pobres, uma alta de 20% dos preços de processados e ultra processados teria um efeito negativo de 2,3% sobre a cesta de consumo. Já no cálculo do consumo total, que leva em consideração que as famílias irão buscar substitutos a esses alimentos, como produtos in natura, o consumo sobe 4,20% para essa faixa.
Esse valor decresce, mas somente assume valores negativos para os três últimos decis. No último, que agrega os 10% mais ricos, o repasse do imposto seria de 0,89% sobre a cesta, mas a variação final sobre o consumo total seria de -0,49%. Os autores também cruzaram os dados com estimativas sobre anos de vida perdidos por doenças ligadas ao consumo de ultraprocessa-dos do estudo "Carga Global de Morbidade" (GBD, na sigla em inglês), um trabalho que investiga no mundo todo os efeitos sobre mortalidade e incapacitação de 107 doenças e 10 fatores de risco. Transformando esses dados em acréscimo de renda obtido pela elevação dos dias de trabalho, eles encontram uma elevação de 3,85% da renda dos 10% mais pobres, porcentagem que decai até chegar a +0,44% entre os 10% mais ricos. Por último, eles também fizeram um cruzamento com informações hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), como o número de internações e custos médicos com tratamento dessas doenças, para estimar qual seria o impacto sobre as despesas com saúde dos brasileiros. O resultado sugere que um imposto do tipo reduziría em 6,56% os custos médicos do decil mais pobre, número que também decresce até chegar a 0,06% para o decil mais rico.
"Provavelmente, essa análise subestima a queda das despesas médicas, já que não contabiliza os custos de tratamento no setor privado. Mas é forma bruta de mostrar que realmente há um ganho para as pessoas e também para o SUS", diz Courtney Price Ivins, também do Banco Mundial. A inclusão de alimentos ultra-processados dentro do Imposto Seletivo é uma ideia que órbita a discussão da reforma tributária e tem o apoio de entidades ligadas à saúde pública e do governo. No entanto, até o momento, não teve força para passar pelo crivo das negociações no Congresso. Caso esse quadro mude, o Brasil seria o primeiro país do mundo a aprovar uma taxação que toma como base o nível de processamento do alimento. Isso porque, via de regra, experiências do tipo miram determinados ingredientes ou tipos de produto, como o "imposto do refrigerante" ou o imposto sobre açúcar. Mesmo da Colômbia, que em 2023 começou a aplicar um imposto sobre "junk foods", a legislação mira determinados níveis de nutrientes, como o açúcar, o sal e a gordura hidrogenada, explicam os economistas.
Existe um debate sobre a melhor forma de gerar incentivo a uma alimentação mais saudável. O Brasil é um ponto fora da curva ao sugerir fazer isso baseado no nível de processamento", diz Coelho. A proposta de regulamentação da reforma tributária aprovada na Câmara além de não taxar os ultraprocessados ainda inclui vários deles na cesta básica, o que isenta esses produtos dos impostos normais sobre consumo. Entre os alimentos ultraprocessados incluídos na proposta de cesta básica estão pão de forma, biscoitos recheados, macarrão instantâneo, mistura para bolo ou molhos prontos. Os pesquisadores ressaltam que a literatura científica tem se voltado cada vez mais aos riscos associados não só ao consumo em excesso de determinados nutrientes, como também o próprio nível de processamento. Um estudo de pesquisadores da USP, Fiocruz, Unifesp e Universidad de Santiago de Chile, publicado na American Journal ou Preventive Medicine, apontou que 57 mil mortes prematuras por ano são atribuíveis ao consumo desses alimentos no país. Iunes ressalta que a proposta de olhar o nível de processamento tem outra vantagem. "Em geral, quando se tenta desincentivar o consumo de um alimento tributando segundo a presença de ingredientes específicos, a indústria encontra formas de driblar a essa taxação. Por exemplo: reduzindo o nível de determinado ingrediente para escapar da lei, ou então substituindo-o por outros químicos que podem ser, inclusive, piores que o original. Por isso, a lógica dos ultraprocessados é muito feliz. Tira a indústria desse jogo", diz.
O estudo não foi feito pensando especificamente na discussão do regulação de reforma tributária que tramita no Congresso no momento, mas os pesquisadores concordam que a aplicação do IS sobre ultraprocessados é a forma correta de tratar o tema. "Primeiro, porque muda a questão dos preços relativos - deixa os ultraprocessados mais caros na comparação com os in natura. Segundo, pela própria ideia do IS, que deixa claro que determinados produtos são nocivos à saúde. É importante que as pessoas entendam porquê estão pagando mais", diz Coelho.
Ivins chama atenção a outro aspecto retirado da análise da POF. "Os dados mostram que, no Brasil, os ultraprocessados ainda respondem por menos de 50% do consumo energético, independente da faixa de renda, e também que os estratos que mais consomem são os mais ricos. É um quadro diferente dos Estados Unidos e outros países de alta renda, onde essa porcentagem já é 60%", diz. "Ou seja, essa transição ainda não ocorreu no Brasil. Então podemos dizer que há uma janela limitada para implementar uma política fiscal que aborde essa questão de forma progressiva. Uma vez que os hábitos alimentares forem alterados e estejam arraigados, é muito mais difícil reverter isso." "No Brasil, esses produtos ainda detêm menos de 50% do consumo energético, independente da faixa de renda"
Fonte: Jornal Valor Econômico