Investimento nos municípios cresce 28%, mas queda de repasses afeta arrecadação

Enviado Segunda, 29 de Janeiro de 2024.

Reforço do ISS ajudou receita própria de prefeituras a crescer de janeiro a outubro de 2023

Os municípios brasileiros elevaram a arrecadação própria em 2023, mas sofreram com a queda de repasses importantes da União e dos Estados. O impacto dessa situação foi diferente conforme o tamanho das cidades. Houve aumento de receita corrente em municípios mais populosos e perda nas cidades menores no período de janeiro a outubro em relação aos mesmos dez meses do ano anterior.

Os gastos correntes (relativos ao ano de 2023) cresceram de forma homogênea. Os investimentos dispararam, com aumento real (descontada a inflação) de 28% no período. Os números são de levantamento realizado pelo Valor nos dados apresentados por 2.579 municípios ao Tesouro Nacional. Foram consideradas receitas realizadas e despesas liquidadas. O conjunto dessas cidades representa cerca de 80% da população brasileira, cerca de 162 milhões de pessoas.

O crescimento dos investimentos ganha destaque diante da variação de receitas e despesas correntes, cujos aumentos no período foram de 2,2% e 10% além da inflação. Os investimentos dos 2.579 municípios do levantamento atingiram R$ 53,1 bilhões. De janeiro a outubro de 2022 haviam somado R$ 41,5 bilhões.

Segundo representantes de municípios e especialistas em contas públicas, poupança acumulada de períodos anteriores, transferências de emendas parlamentares e operações de crédito possibilitaram o aumento de investimentos nessa magnitude face a desaceleração de receitas.

Gabriel Leal de Barros, economista e sócio da Ryo Asset, destaca que a poupança foi possibilitada por fatores conjunturais favoráveis à arrecadação dos municípios e também às transferências recebidas da União, como inflação e choques que elevaram cotações de commodities. Esses fatores foram temporários. Seus efeitos praticamente se esgotaram principalmente em 2021 e parte de 2022.

A questão agora, segundo os especialistas, é como os gastos vão se comportar - especialmente os investimentos. Este ano é o último de mandato dos atuais prefeitos. Investimentos são uma maneira de marcar a administração perante o leitor, principalmente para os prefeitos que querem se reeleger ou fazer o sucessor. Sem perspectiva de aumento das receitas, muitos municípios podem comprometer suas contas nos próximos anos com gastos sem lastros feitos antes da eleição.

“Estados e municípios podem voltar a um quadro semelhante ao de 2019, de antes da pandemia, com dificuldade de receitas”, diz o economista. Ele explica que parte do investimento maior resultará em elevação futura das despesas correntes obrigatórias, o que pode dificultar ainda mais o quadro fiscal de municípios com a desaceleração da economia.

Giovanna Victer, secretária de Fazenda de Salvador, comenta que houve no ano passado grande esforço na arrecadação própria dos municípios, mas as receitas de transferências correntes foram desfavoráveis.

O levantamento mostra: a arrecadação própria com impostos, taxas e contribuições de melhoria avançou 7,6% reais de janeiro a outubro de 2023 contra igual período de 2022. A alta foi menor nas maiores cidades, com média de 5,6% nos municípios com mais de 1 milhão de habitantes, e maior nas pequenas - 17,1% de aumento em localidades com 10 mil a 20 mil moradores.

O Imposto Sobre Serviços (ISS) cresceu 8,7% no agregado desses municípios nos primeiros dez meses de 2023. O ISS corresponde por quase metade da receita própria das prefeituras - em média 44,5%.

As transferências correntes totais aos municípios caíram 0,7% em termos reais. Somente entre os municípios com mais de 1 milhão de habitantes houve alta de 0,9%.

Entre os principais repasses obrigatórios aos municípios, os recursos agregados do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), transferidos pela União, caíram 0,9% em 2023 e os de ICMS, dos Estados, baixaram 5,7% reais.

A queda nas transferências do FPM atingiu todo o espectro populacional. As do ICMS, seis das oito faixas. A queda foi maior nos municípios acima de 1 milhão de habitantes: 13,7% reais.

“Salvador recebeu, no ano todo de 2023, R$ 60 milhões a menos em repasse de ICMS do que em 2022”, diz Victer. “O Estado da Bahia chegou a fazer aumento da alíquota modal do imposto, mas não percebemos ainda recuperação desses valores. Não esperávamos que poderíamos ter uma queda nessa transferência em termos nominais. O que está salvando os municípios são as receitas próprias, por meio de esforço de arrecadação, mas isso tem limites.”

Os dados mostram que na capital baiana a arrecadação própria cresceu 7% reais de janeiro a outubro, com alta de 6,1% no ISS e 3,9% no IPTU ante o mesmo período de 2022. Nesses dois tributos, diz Victer, a elevação de receitas veio de esforço fiscal, e não de aumento nos tributos.

No IPTU houve medidas como atualização de cadastro e regularização fundiária. A secretária lembra que a reforma tributária deve permitir reforço na cobrança do IPTU, já que com a nova emenda o Poder Executivo poderá determinar a atualização da base de cálculo do IPTU, desde que siga critérios definidos em lei municipal. A medida, diz ela, vai favorecer principalmente cidades menores, nas quais não há ainda estrutura consolidada de cobrança do imposto.

“No médio prazo, as prefeituras precisarão reagir”, diz a secretária. Para ela, com a reforma tributária e a entrada do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), as prefeituras vão perder muito da autonomia de que gozam hoje com o ISS. O IBS começa a entrar em vigor em 2029.

Para este ano e o próximo, a atenção especial está voltada para os repasses de ICMS e FPM. “A União tem um programa de ajuste fiscal cujo sucesso depende do aumento de receitas, mas isso ainda não aconteceu nos tributos que são repassados via FPM”, diz Victer.

A receita corrente agregada (receita total recebida durante o ano) dos municípios pesquisados somou R$ 697,1 bilhões de janeiro a outubro de 2023 e subiu 2,2% em termos reais sobre igual período de 2022. O resultado variou conforme a faixa populacional.

Cidades acima de 50 mil habitantes tiveram aumento maior de receita, entre 2,2% e 3,7% no período. Municípios com até 10 mil habitantes tiveram queda de até 0,6%, na média por faixa. Esse grupo totaliza 783 cidades, cerca de 30% do levantamento.

O quadro reflete a situação heterogênea das cidades, diz Ursula Dias Peres, professora de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. “Os dados mostram uma queda muito importante no repasse de ICMS, receita que em muitos municípios pesa mais que o repasse federal do FPM”, diz. “Isso afeta a receita corrente dos municípios nos quais as transferências correntes são dominantes, ainda que tenha havido um repasse maior do IPVA estadual, como reflexo do aumento de preços dos veículos, e também bom desempenho de IPTU e ISS.”

O repasse de IPVA subiu 20% no agregado, com altas em todas as faixas populacionais, que variaram de 19,3% a 23,7%.

Os dados mostram ainda a alta dependência de algumas prefeituras em relação a repasses de União e Estados. Juntas, transferências de ICMS e FPM representam em média 58,8% das receitas correntes totais na faixa de até 5 mil habitantes e equivale a apenas 12,5% nas cidades com mais de 1 milhão de moradores. No agregado dos municípios, a média é de 23,6%. O ISS, que representa em média 24,3% da receita corrente em cidades mais de 1 milhão de habitantes e equivale a 2,7% nas com até 5 mil moradores.

As despesas correntes aumentaram 10% no agregado dos mesmos 2.579 municípios, com altas que variaram de 7,3% a 10,8%, conforme a faixa populacional. O gasto foi puxado pelas despesas de pessoal, que cresceram 8,7% no agregado, também com aumentos em todas os tamanhos de cidades.

A elevação da despesa de pessoal é resultado da liberação de reajustes e contratações. Esses gastos estavam restritos pela Lei Complementar 173/2020 até o fim de 2021, diz Peres. “Desde 2022 houve, além da pressão dos servidores por reajustes, a elevação de pisos na enfermagem e no magistério, o que ajudou a pressionar gastos em saúde e educação, áreas que também são atingidas por aumento no custeio, com contratações de serviços de terceiros.”

“Há muitos municípios com saldos de caixa ainda, mas para a maioria das prefeituras há grande dependência das transferências, e a situação mais complicada ficará mais clara com o cenário de incertezas à frente”, diz Peres.

Fonte: Valor Econômico