Dornelles atravessou 60 anos da República

Enviado Quinta, 24 de Agosto de 2023.

Presidente de honra do PP tinha a política no sangue, comandou ministérios e foi governador

A história de Francisco Dornelles, morto aos 88 anos nessa quarta-feira (23), no Rio, passou por seis décadas da República. Transitando do trabalhismo varguista ao pragmatismo do PP, do qual era presidente de honra, foi ministro três vezes, governador do Rio, vice-governador, senador e deputado. Tinha a política no sangue e uma árvore genealógica repleta de frutos presidenciais: era primo de segundo grau de Getúlio Vargas, além de sobrinho de Tancredo Neves e de Humberto Castelo Branco.

Depois de tantos anos em Brasília, virou uma espécie de “guru” no Rio na reta final da vida. E precisou botar a mão na massa quando ocupou de forma interina o Palácio Guanabara na maior crise fiscal da história do Estado, em 2016. Apesar de ter construído a vida pública no Rio, o estilo de Dornelles, nascido em Belo Horizonte, era mesmo o estereótipo do mineiro: sempre sereno e conciliador, recebia até os primeiros meses deste ano políticos de diferentes perfis que lhe pediam conselhos.

Foi Tancredo quem colocou o sobrinho na política. Dornelles viu de perto a dinâmica do poder quando exerceu o cargo de secretário pessoal do presidente João Goulart, em 1961, época em que estava filiado ao PTB varguista. Nos primeiros anos da ditadura militar, dedicou-se à vida acadêmica dentro e fora do Brasil, mas voltou ao país e comandou a secretaria da Receita Federal em 1979, quando deu início à longa lista de cargos ligados à economia, sempre com viés liberal.

As origens na esquerda ficaram no passado: havia entrado na Arena, partido do regime militar, e continuaria no apêndice dela, o PDS. Passou um curto período no MDB, no processo de redemocratização, quando o tio Tancredo o escolheu para o Ministério da Fazenda do primeiro governo pós-ditadura. O mineiro, sabe-se, morreu antes de assumir o cargo, mas José Sarney manteve a escolha para a pasta.

O sobrinho do quase presidente, no entanto, ficou apenas cinco meses à frente do ministério. Na condução da política econômica, envolveu-se em disputa com o ministro do Planejamento, João Sayad. O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) lembra que Dornelles defendeu uma política centrada na elevação da taxa de juros e em um rígido combate ao déficit público, apontado por ele como causa dos males da economia brasileira. O grupo de Sayad criticava os efeitos recessivos dessas medidas e defendia política mais flexível, que admitisse taxas moderadas de inflação.

De volta à direita tradicional, participou dos primeiros anos do PFL, pelo qual foi deputado constituinte, antes de voltar para as siglas que construíram o atual PP.

Foi com Fernando Henrique Cardoso, já depois dos 60 anos de idade, que Dornelles teve protagonismo por mais tempo na Esplanada. Ficou por quase dois anos no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e mais de três na pasta do Trabalho.

Depois de sucessivos mandatos na Câmara, Dornelles virou senador pelo Rio na eleição de 2006 e passou os oito anos no cargo. Ao fim do mandato, assumiu como vice-governador do Estado no início de 2015, na segunda gestão de Luiz Fernando Pezão (MDB). No ano seguinte, aos 81, precisou comandar interinamente o Guanabara quando Pezão se afastou para se recuperar de um câncer. O Estado vivia a maior crise fiscal da história, com o petróleo em baixa e salários atrasados. É Dornelles quem decreta estado de calamidade pública, em junho daquele ano, a cerca de 50 dias das Olimpíadas do Rio.

“Ele era uma figura maravilhosa. Votei muito nele e tive a honra de trabalhar junto, de tê-lo como vice. Ele apagava todos os incêndios, tinha vivido de tudo na política. Era uma enciclopédia. Além de tudo, perdi um grande amigo, que me visitou todos os dias nos meses em que fiquei de repouso por causa do câncer”, afirma Pezão ao Valor.

Pezão voltou à cadeira, mas, preso pela Lava-Jato a pouco mais de um mês do fim do mandato, abriu espaço de novo para Dornelles. Foi o político quem passou o cargo em janeiro de 2019 para o eleito Wilson Witzel (PSC) — que seria afastado menos de dois anos depois, também sob suspeitas de corrupção.

Dornelles estava internado desde maio no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, zona sul do Rio. A causa da morte não foi revelada. Ele deixa a mulher, Cecilia Andrade Dornelles, e duas filhas. O velório será na sexta-feira (25), no Centro Cultural da FGV, também em Botafogo. Principal figura do PP em nível nacional, o presidente da Câmara, Arthur Lira, classificou Dornelles, em postagem nas redes sociais, como “uma referência política nacional e um exemplo de homem que fazia a política maior.”

O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), fez relato que ilustra como Dornelles era visto no jogo local: “Nos últimos 20 anos não fiz um movimento sequer em minha trajetória política sem ouvi-lo antes.” O governador Cláudio Castro (PL), que decretou luto de três dias, seguiu linha parecida: “Com trajetória impecável, foi exemplo para a classe política com seus conselhos, troca de experiências e conduta inspiradora, tal como um pai para as gerações mais jovens.” Há, inclusive, uma máxima atribuída a Dornelles. “Se você perguntar a certos políticos por que eles mudaram de governo, eles vão dizer que sempre foram governo; os governos é que mudaram”, dizia, segundo aliados.

Fonte: Jornal Valor Econômico